A lembrança mais emocionante do nascimento da nova capital, para nós do Correio, será sempre a do fundador do jornal Ari Cunha, que todos os anos, nesta data, contava como ele viu o amanhecer de Brasília no dia 21 de abril de 1960. Enviado por Assis Chateaubriand para identificar o terreno onde seria construído o jornal e acompanhar as obras, o jornalista cearense, então radicado em São Paulo, chegou aqui em 1958. Na véspera da inauguração, Ari era, por assim dizer, anfitrião dos que vinham a convite dos Diários Associados. Durante coquetel de apresentações, João Calmon, que depois sucedeu Chatô no comando da rede, soube que um jornalista tcheco, que viera por conta própria, não tinha onde dormir. Não teve dúvida em passar o problema para Ari Cunha, que acabou cedendo a cama dele no Brasília Palace para o coleguinha.
“Como não tinha onde dormir, saí com o jipe que usava e fui ver o Palácio da Alvorada. Lá, a guarda ficou protegendo também o meu carro com o dístico do O Jornal, do Rio de Janeiro. Dormi tarde, depois das solenidades. As muriçocas da Vila Amaury não davam sossego. Adormeci tranquilo e satisfeito. O sol nascente me despertou. Era o vermelhão de abril anunciando o dia 21. Não me lembro de emoção igual ao acordar em frente ao Palácio da Alvorada no dia em que a cidade era inaugurada. Sozinho, frente ao jardim que ia da estrada à entrada do palácio, fiz passar o filmezinho da vida”, escreveu o mestre de uma geração.
Outra testemunha da inauguração foi o radialista igualmente cearense Mário Garofalo, que atuou praticamente em todas as frentes. Já quase de madrugada do dia 21, depois de entrevistar autoridades e convidados especiais, Mario tomou o rumo da trilha do cerrado escuro, onde estava sendo construída a sede do jornal. Aqui, tomou conhecimento que o espalhador de tinta das velhas máquinas recicladas do Diário de Mato Grosso (mais tarde Diário da Serra) tinha quebrado e o primeiro caderno do jornal não poderia ser rodado. Imediatamente, ele pegou o jipe Willys de capota de lona e se mandou para a Cidade Livre (atual Núcleo Bandeirante), onde o burburinho dos serviços e do comércio funcionava 24 horas por dia. Garofalo acabou encontrando o torneiro de nome Nascimento, que prontamente fez a solda em liga especial.
As solenidades matinais exigiam traje a rigor, com direito a fraque e cartola. E assim se apresentou Mário ao grupo de senhoras, mulheres dos diretores dos Associados, levando quatro delas para almoçar no Chez Willy, que acabava de se instalar na Cidade Livre. Ao chegar, o grupo causou surpresa aos candangos que aguardavam atendimento na Novacap, localizada na mesma quadra. Certamente nunca tinham visto mulheres tão elegantemente vestidas com brilho e motorista usando fraque e cartola, até que um garoto resumiu a cena: “Olha, o mágico!”
Não dá para negar que o radialista de alma italiana tivesse um toque mágico. Anos depois, no momento que ficou sabendo que o presidente da República assinara decreto concedendo-lhe direito para explorar a Brasília Super Rádio FM, fundada por ele, atravessou correndo a passarela de entrada ao Itamaraty e sapecou um beijo na bochecha do general João Baptista Figueiredo, que chegava para um compromisso. Essa cena, eu vi!
Voltando à inauguração da cidade, o mesmo “mágico” não hesitou em pegar no colo cada uma das mulheres e colocá-las a salvo de lama e barro na festa, cujos salões elas pisavam com sandálias luxuosas de altíssimo salto sem precisar atravessar estacionamento que sequer existia.
O primeiro baile
“Nunca mais verei um espetáculo mais chique do que a inauguração de Brasília”, proclamou o colunista social Jacinto de Thormes na edição histórica da Manchete, toda ela dedicada à nova capital. Nascido Manoel Antonio Bernardez Muller no Rio de Janeiro em 1923, ou simplesmente Maneco Muller, foi um jornalista, cronista esportivo e precursor do colunismo social no Brasil. Nessa atividade adotou o pseudônimo Jacinto de Thormes retirado de um personagem de Eça de Queirós em A Cidade e as Serras. Culto, elegante e gentil Maneco cunhou algumas expressões francesas, como crème de la crème, que garantiu estar presente no primeiro baile realizado no Palácio do Planalto. “Como os Delamare, os Leite Garcia, os Amaral, os D´Orey, os Almeida Prado, os Pinheiro Guimarães, os Wainer, os Carvalho Pinto e outros que amanheceram com o acontecimento do século”.
Na crônica sobre “a noite inesquecível”, Jacinto de Thormes critica os que criticavam a mudança da capital e admite “para esses, a falta de cortina no quarto foi motivo de escândalo. A luz fraca foi o caos. A água que saía fria da torneira era prova de que Brasília não estava pronta para ser a capital do Brasil.” E concluiu que uma ruidosa minoria — senadores idosos demais para saírem dos seus hábitos; deputados da Oposição a procura de justificativas, jornalistas inconformados — gente derrotada pela fibra de um líder, dois arquitetos e 50 mil candangos. Para “essas pessoas – observa o colunista social — não havia ninguém elegante”.E cita, além das autoridades e corpo diplomático, o príncipe Dom João de Orleans e Bragança, a socialite Lourdes Catão, os casais Horácio Láfer, Roberto Marinho, Conde de Larish, Condessa Pereira Carneiro, dona do Jornal do Brasil e outros.
A imprensa realmente bateu muito e foi responsável por algumas versões de que aqui se construía “uma obra faraônica que até pirâmide tinha”, referindo-se ao Teatro Nacional (parece que praga pega!). A crítica, porém, não arrefeceu o ânimo de JK que, quando podia, até fazia piada. Numa visita ao teatro, na companhia de Israel Pinheiro, o presidente bem humorado ao divisar a grandeza do monumento visto debaixo, pôs a mão no ombro do chefe do grande canteiro de obras e sentenciou: “Faraó perto de nós é pinto”!