Poesias etílicas

Publicado em Crônica

Não é exatamente um parnasiano. Mal sentou-se e, sem que fosse feito o menor aceno, foi servido, com cerveja de garrafa “mofada”, canela-de-pedreiro, estalando de gelada. Antes do primeiro gole, olhou para o copo já suado e, alto e bom som, declamou:

Eu bebo,

Não é por vício, nem por nada

É que olho no fundo do copo

E vejo o rosto da mulher amada

E eu não quero que ela morra afogada!

Aplausos e risadas, ninguém se cansa do ritual de todos os sábados, quando o proctologista Mário abandona seus afazeres e vira mortal, como um Thor que deixa o martelo de lado por alguns instantes. Ele está ali para aliviar tensões e lembrar que a vida é para ser celebrada.

Mário é um filósofo; acredita que afogar as mágoas na bebida é um desperdício. De bebida. Ainda assim adora as canções que trazem temas etílicos, sem preconceitos – de Vingança, de Lupicínio, a Garçom, de Rossi. Só não atura a grandiloquência de O Ébrio, de Celestino.

Todos os personagens dessas – e de uma infinidade de outras – canções são vítimas da falta de escrúpulos de donos de bar.

O bom dono de bar deve ser um companheiro; deve ficar atento aos sinais que mostram a predisposição do sujeito que quer beber para esquecer. E parar de servir, deixar a ganância de lado.

Não precisa chegar ao exagero do Seu Nelson que limita o consumo em três doses: ”- A quarta não é aqui”, repete sempre.

E explica: não gosta de aturar bicudo. Prefere perder a venda a ver alguém ficar tonto em seu estabelecimento. E não adianta insistir, fazer o quatro levantando uma das pernas, recitar um trava-língua sem gaguejar, ajoelhar. É um intransigente. Até com doutor.

Seu Nelson acredita que o bar é um nivelador social. Todo mundo ali tem a mesma importância – menos ele, lógico, que está acima de todos. E exerce o poder imperial, até mesmo de dar bola preta para determinados sujeitos que, apesar do controle, passaram da conta.

Foi o caso do velho Morsa, que fica bicudo praticamente no primeiro trago, e não é mais servido no estabelecimento. Ele já se humilhou, pediu para ficar – nem o diploma de médico ajudou. Morsa nem perturba ninguém; fica num canto recitando poesias imaginárias, conversando com pessoas que só ele vê ou cantarolando improvisos.

Há quem se divirta, mas Seu Nelson não gosta do espetáculo. Diz que é degradação e se recusa a participar dela. É o dono de bar exemplar. Trata a todos com um respeito que nem o próprio cliente tem por si.

E não é mal-humorado. Consegue rir até quando o Doutor Mário se levanta e repete pela enésima vez:

Desce pinga marvada,

Por esse buraco sem fim,

Lá em baixo você num vai encontrar

Nem figo, nem baço nem rim.

Água do capeta,

Sangue do satanás,

80 capeta junto,

Não faz o que essa danada faz.

Vai pra lá, vem pra cá

Como é bom beber neste lugar.

E desce mais uma.

Publicado no Correio Braziliense em 25 de julho de 2021