Para falar de flores

Publicado em Crônica

Antes mesmo da mudança da estação, as chuvas caíram e fizeram a gentileza de entregar uma cidade verdinha à primavera. Os gramados vicejam rapidamente, mostrando a força da natureza, que colore um pouquinho a vida da gente, mostrando que há muitas cores importantes, além da camisa do futebol e das bandeiras dos partidos.

Mais um pouquinho, teremos novas cores chegando. Os ipês praticamente encerraram seu expediente anual – que aliás foi bem adiantado este ano; as flores dos guapuruvus também já estão mais no chão do que nas copas, mesmo caso das patas-de-vaca e sibipirunas. Mas os buquês de louro-pardo ainda podem ser vistos no parque Olhos D’água, da Asa Norte.

Agora é a vez das flores que nascem rentes ao chão começarem a aparecer; portanto, é hora de andar olhando para baixo. São florezinhas de gramíneas e plantas rasteiras e forrageiras, muitas amarelas, algumas avermelhadas, bem diferentes das flores secas que fizeram a fama do cerrado, numa história que começou como quebra-galho.

Haveria um jantar no Itamaraty para recepcionar o então presidente norte-americano Dwight Eisenhower, que veio lançar a pedra fundamental da embaixada de seu país na nova capital. Em 1960 não havia aviões pressurizados, capazes de trazer flores a Brasília sem que elas murchassem pelo caminho; também não era possível trazê-las de caminhão sem que perdessem o viço. E flores – diz a etiqueta – são fundamentais nos jantares mais bacanas.

No dia da chegada do presidente norte-americano, o cerimonial já havia passado por uma sai justa. Para evitar que Eisenhower tocasse o solo brasiliense sem que o presidente Juscelino Kubitschek, que estava atrasado, estivesse pronto para recebê-lo no aeroporto, o Air Force One teve que dar mais uma voltinha pelo céu daquele fevereiro.

Quem vê a foto do jantar – com a mesa repleta de flores – nem imagina que ali estava a manifestação mais positiva do tal jeitinho brasileiro, essa instituição que hoje se transformou num problema nacional, tal o mau uso.

Fernando Lopes, então funcionário da Novacap, costumava andar pelo cerrado virgem enquanto apreciava as obras sendo erguidas e recolhia flores secas, fazendo pequenos arranjos; mostrou um deles a Alfredo Ribeiro, seu chefe, sugerindo a solução para o impasse internacional. A ideia foi aprovada imediatamente pelo chefão, Ernesto Silva, e salvou a pátria.

De lá para cá, Fernando Lopes se tornou um dos grandes cartazes da Rádio Nacional de Brasília, cantando boleros, e as flores do cerrado se tornaram uma instituição local; são vendidas na feira da torre e na catedral e até cantadas por Caetano Veloso. O erro é achar que não tem mais nada.

Quem se dispuser a andar pelo cerrado ainda intocado, como por exemplo nas chapadas Imperial ou dos Veadeiros – esta já recuperada do incêndio do ano passado, que queimou 65 mil hectares –,vai encontrar pelo caminho alecrim do cerrado, buquezinho branco, bonina, assa-peixe, anileira, chapéu de duende, canela de ema.

E para ouvir os boleros, basta ir N’O Grao, fino boteco do Lago Norte, nas noites de domingo. Tem sempre uma canja do Fernando Lopes.

Publicado no Correio Braziliense de 30 de setembro de 2018