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Música violenta

Publicado em Crônica

Carmen Miranda, em 1932, gravou um samba de André Filho, o autor de Cidade Maravilhosa, que dizia assim: “Vivo feliz, no meu canto, sossegada/ Tenho amor, tenho carinho/ Tenho tudo, até pancada”.

No mesmo ano, Noel Rosa escreveu: “Mas que mulher indigesta, merece um tijolo na testa”. Em 1930, Ary Barroso ganhou o concurso de músicas de carnaval na voz de Francisco Alves, que cantava: “Essa mulher há muito tempo me provoca/ Dá nela! Dá Nela”.

Em 1974, outro dia mesmo, portanto, Simone gravou um samba de roda que diz: “Se essa mulher fosse minha/ Eu tirava do samba já, já/ Dava uma surra nela/ Que ela gritava: chega”.

A violência, além da pancada física, era humilhante. Francisco Alves, o rei da voz, em parceria com Jorge Faraj, gravou uma valsinha em 1936: “Certas mulheres que conheço/ Que vendem conforme o preço/ Os seus amores banais/ E eu volto a chorar pensando/ Que fui bem tolo te amando/ Pois tu deves ser das tais”.

E Mário Lago, que quatro anos depois, com Ataulfo Alves, comporia Amélia, o símbolo da mulher submissa, treinou antes com Benedito Lacerda. A música foi gravada por Orlando Silva, em 1939: “Eras no fundo uma fútil/ E foste de mão em mão/ Satisfaz tua vaidade/ Muda de dono à vontade/ Isto em mulher é comum”.

E o fato de gostar de música não significa comunhão de ideias com os autores. Até porque muitas mulheres, de ontem e de hoje, participam da detração; Francisco Alves, que tantas músicas machistas gravou, derreteu corações femininos até a morte, em 1952, quando milhares de mulheres saíram à rua para chorar pelo ídolo.

Amélia, música-símbolo da mulher submissa, está completando 80 anos. Ainda é ouvida em rodas de samba pela cidade. Não surpreende: a letra é de uma candura angelical diante de alguns funks atuais, alguns deles cantados por mulheres.

É uma música importante, uma das primeiras a usar uma estrutura mais parecida com o samba ouvido nas escolas, menos estilizada do que o que se ouvia no rádio de então, criada por Ataulfo Alves (foto). Mas a letra, de Mário Lago, provocou polêmica desde o início, tanto que nenhum dos grandes cantores da época a lançou, foi gravada pelo próprio Ataulfo (e suas Pastoras).

Amélia virou verbete de dicionário como sinônimo de submissão; a canção é condenada, vem sendo cancelada. Hoje – mesmo depois de passada a pandemia – muita gente prefere usar máscara, se esconder por trás de palavras corretas, ao invés de coibir as ações incorretas.

Amélias e Emílias (“Eu quero uma mulher/ Que saiba lavar e cozinhar/ E de manhã cedo/ Me acorde na hora de ir trabalhar”, do samba de Wilson Baptista) são personagens de outra época. Nos funks atuais a submissão é bem mais explícita, com letras que não se ouvia nem nas músicas safadas de outros tempos.

A sociedade vem se alternando contraditoriamente entre a amoralidade absoluta e as palavras politicamente corretas. É um mundo meio perdido e triste quando a gente vê que as pessoas estão se alienando da vida.

Publicado no Correio Braziliense, em 13 de janeiro de 2023