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Missivistas em extinção

Publicado em Crônica

Deu no jornal que o número de correspondências vai ser superado pelo volume de encomendas no serviço dos Correios. Ninguém pode dizer que a notícias surpreende, mas ainda assim é mais uma marca triste dos tempos atuais, até porque correspondência no jargão da empresa não é necessariamente uma carta, mas qualquer tipo de comunicação. As cartas – aquelas escritas em papel pautado ou até à máquina – perdem feio

Os missivistas são espécime mais ameaçadas de extinção do que o mico-leão dourado; estes ainda sobrevirão em cativeiro, habitat que não agradaria escrevinhadores. Não vou longe no esforço de reportagem: em meu escaninho só tenho recebido carta de banco (nenhuma com boas notícias) e circulares impressos.

Quando estudava longe de casa, recebia com ansiedade as cartas da mãe, todas lidas muitas e muitas vezes; só a estupidez juvenil – e talvez a volta para casa – justifica o fato de não tê-las mantido. Seriam autênticos tesouros hoje, em que pese a péssima caligrafia da mãe. Também escrevi para muitos amigos e poucas namoradas, mas não consigo lembrar quando escrevi minha última carta.

Na redação de uma emissora de TV, tínhamos um companheiro que era conhecido pela alcunha de divino missivista. Naquele tempo as notícias se recusavam a acontecer em alguns períodos do dia; era a fase da apuração, quando os repórteres estavam atrás de todos os fatos para compor o que chamamos de matéria.

Era nesse lusco-fusco editorial que o divino missivista atacava. Escrevia longas cartas, declarações contundentes de amor eterno para um grupo – não muito pequeno, pode-se dizer – de moças que ele guardava no imenso coração. Eram cartas escritas na velha máquina de escrever de tipos grandes, próprias para TV e rádio, mas com sentimento parnasiano em cada letra de forma.

No fim do dia, um espírito-de-porco escarafunchava a lixeira do divino missivista em busca de rascunhos que eram levados ao bar do Mendes, depois do expediente, quando os colegas se roíam de inveja das conquistas que ele, cavalheiro, sempre se recusou a nomear – “o que aconteceu já foi bom demais”, repetia.

Mas ultimamente tenho sido atropelado na contramão. Estão chegando cartas. Danilo Gomes, recentemente empossado na Academia Brasiliense de Letras (e que ainda não pagou o chope de comemoração) é um contumaz missivista – mais até; seus envelopes pardos são como um kinder ovo para gente crescida. Além da carta, com novidades e comentários, ele sempre inclui escritos mais antigos, inclusive de outros correspondentes, dividindo seus alfarrábios.

Danilo gosta da mesa do bar, mas acredita piamente no poder das cartas. É de uma gentileza ímpar, embora tenha posições firmes. Mantém uma rede de correspondências ampla e, descubro agora, tem fixação pelo espírito aventureiro, ainda que mercantil, dos tropeiros. A faísca veio do avô paterno, Carlos de Assis Gomes, tropeiro que se fez poeta.

Não tenho correspondido á gentileza; ainda não consegui escrever uma carta que merecesse o luxo de um envelope – ainda mais porque moramos a poucos conjuntos de distância. Mas vou escrever, nem que seja para contrariar o fluxo no trabalho dos carteiros.

Publicado no Correio Braziliense em 25 de fevereiro de 2018