assedio

Assédio poético

Publicado em Crônica

Hoje em dia é preciso estar atento para não ser acusado de assédio. Um assovio fora de hora pode ser confundido com uma cantada indecente, um olhar mais insinuante pode causar dor de cabeça em cibalena, uma ordem no trabalho pode levar à delegacia, quem sabe, ao xilindró. São dias perigosos. Mas a alma romântica vence qualquer barreira, até as legais.

Waldir é desses homens que experimentaram a vida; fez de tudo um pouco. Potiguar, traz o sal nas veias. Tem fama de valente – que, como se diz no Nordeste, não se desmente. Escreveu livros, se arrisca em bons e refinados contos, é competente revisor de obras alheias; foi jogador de futebol, andou pela boemia carioca, mas acima de tudo é um romântico.

Viperinos dizem que já passou da flor da idade, mas certamente não perdeu o charme insinuante com as moças. Elegante e bem-humorado, conversa macio, tem sempre um assunto interessante na ponta da língua e é daqueles que faz da interlocutora a pessoa mais importante do planeta durante a conversa.

Não bebe nada além de um suco, mas vai ao bar quase todas as noites, depois de passar o dia flanando pela cidade, cortejando mocinhas (que mal há?), distribuindo encanto.

Ultimamente tem recebido a atenção de uma cuidadora. Um perigo, raciocinaram os amigos. A moça se desdobra nos paliativos, anteparos e dedicação, enquanto Waldir desenvolve argumentos, fazendo a moça cativa da boa e respeitosa lábia. Mas não basta. A alma romântica falou mais alto e ele, mesmo sob o risco de uma acusação por assédio poético, escreveu:

Levado nas águas por sob a ponte

Da vida de ontem da vida de agora

O outono mais uma vez vai embora

Dissipando brumas no horizonte,

Reverberando raios do passado.

 

Amanda eu amei antes de conhecê-la

Naquela noite de chuva impertinente

O chão chafurdado o céu sem estrela

O futuro por tudo onipresente

Nas rimas do poema original.

 

Ao longo do longo itinerário

O poema já estava pronto,

Faltava-lhe o nome Amor Outonal

 

O poema foi mostrado pelo próprio Waldir aos amigos, uma espécie de confissão da contravenção. Houve propósito, mas ninguém pode acusá-lo de dolo. São palavras de admiração, mas também de agradecimento; insinuantes, mas sem volúpia; vibrantes, mas ainda assim ternas.

Havia profissionais de muitas áreas no local, nenhum juiz de direito, sequer um delegado de polícia. Ficamos sem saber se estava tipificado o assédio poético. As almas mais sensíveis elogiaram, houve ressabiados, certamente com inveja da ousadia e da categoria do poema. Advogados acreditavam que, no mínimo, cabe defesa, incluindo infinitos recursos.

Poetas devem ter licença para dizer o que querem, a quem quiserem. Mas vates não são santos. Castro Alves foi acusado de ser xexeiro, Dante Alighiere foi condenado e banido por corrupção, Gregório de Matos foi apontado como blasfemo, Pablo Neruda confessou ter estuprado uma moça.

Mas roubar corações não é crime. E eu só sei que agora as moças e senhoras que frequentam o bar também querem cuidar do Waldir, na esperança de também ganharem um poema.

Publicado no Correio Braziliense em 25 de junho de 2023