Pandemia é tema de novo romance de Miguel Sousa Tavares

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Um episódio real e chocante despertou no português Miguel Sousa Tavares a urgência de escrever o romance Último olhar. Durante a pandemia, o autor leu em um jornal a história de um ônibus apedrejado na Espanha ao transportar idosos infectados com o novo coronavírus. “Tropecei nessa história de um ônibus dos velhos, no sul da Espanha, que estavam sendo mudados para uma espécie de sanatório e foram apedrejados. Como se fazia na idade média. Hoje essa história é tão impressionante que, de repente, me pus a pensar quem seriam os velhos que iam no carro, aquela gente que parecia normal. E comecei a congeminar toda uma história grande à volta do assunto”, conta. “É um livro escrito por causa e durante a pandemia, quando eu estava isolado numa casa de campo fazendo uma espécie de diário sobre o que acontecia em Portugal e no mundo, coisas que achava que devia guardar para memória futura e que mais tarde podíamos não lembrar.” 

Assim nasceu Pablo, um octogenário transferido de um asilo com outros idosos porque não há lugar para os mais velhos nos hospitais e o governo decidiu que os poucos leitos seriam destinados aos que têm mais chances de cura, ou seja, os mais novos. Pablo é um espanhol que viu, menino, a família lutar contra a ditadura de Franco e, logo depois, se tornar refugiada numa França ocupada pelos nazistas. A condição de revolucionários despedaça ainda mais o núcleo familiar do personagem, que acaba num campo de concentração com o pai. Quando a guerra acaba, apenas ele sobreviveu. 

Duas histórias correm em paralelo no romance, dois fios narrativos que acabam por se encontrar. Inês é uma médica que perde um grande amor para o vírus e decide se embrenhar na linha de frente de combate à covid-19 ao descobrir que os idosos, por decisão não oficial do governo, não são prioridade durante a crise sanitária. É na casa de repouso na qual vive Pablo que ela se instala. Não há médicos designados para essas instituições e a chegada de Inês é um sopro de humanidade num momento em que a crueldade parece ser a regra. “Pablo é um personagem que acaba a vida descrente do ser humano porque assistiu a todas as bestialidades possíveis, a guerra civil espanhola, irmãos contra irmãos, resistiu ao campo nazi e depois é apedrejado pelos próprios conterrâneos. E o crime dele é ser velho e estar doente. Até então, apesar de tudo, ele amava viver. Acaba da única maneira que podia acabar”, avalia Sousa Tavares. 

O romance traz uma bela reflexão sobre os rumos da sociedade em tempos de crise e estado de emergência. Num momento em que leitos faltam e respiradores não são suficientes, em que o mundo pára mas os serviços essenciais precisam continuar, em que muitos se arriscam para outros se salvarem, a humanidade não hesita em contabilizar quais vidas seriam descartáveis. Pablo, testemunha de um século de barbáries, e Inês, que troca o conforto de um hospital de apoio por uma linha de frente, são lembranças de que o valor dos seres humanos não pode ser medido em anos de vida ou função exercida. Último olhar é um romance sobre o envelhecimento, a morte, a mesquinhez humana, mas também sobre o amor e a liberdade.

A obra chega às livrarias exatamente 23 anos depois do lançamento de Equador no Brasil. O romance, uma longa história de amor entre um governador e uma inglesa durante o período colonial, fez enorme sucesso, foi traduzido para 10 idiomas e teve mais de 400 mil exemplares vendidos. É um livro bem diferente de Último olhar. “Há uma frase que cito no começo do livro, de uma cientista portuguesa que diz que esse é um vírus bonzinho porque só mata velhos. Essa frase resume toda a crueldade com que, no início, se olhou para a situação. Descartar quem não era útil e seria um peso, essa barbaridade é que eu quis testemunhar no livro. Esse episódio em Espanha é um ponto extremo. Houve uma espécie de demência onde as pessoas se portavam como na idade média. E, de repente, nós, que éramos civilizações tão aparentemente organizadas e informadas, mostramos o pior de nós mesmos”, diz Miguel Sousa Tavares, em entrevista ao Leio de tudo. 

 

Entrevista: Miguel Sousa Tavares

Muito se falou sobre a sociedade sair melhor da pandemia  depois de um sofrimento coletivo. O que acha disso?

Não saímos melhor. A única coisa que saiu melhor disso foi a ciência. A ciência foi a única coisa surpreendente porque se conseguiu vacinas muito mais depressa do que pensávamos. Isso foi feito contra a negação de pessoas como Bolsonaro ou Trump, criminosos em grande escala. Quando você tem dirigentes políticos que põem à frente da salvação dos cidadãos crenças contras os cientistas e técnicos, do tipo machistas e idiotas, acho que não há perdão. As redes sociais fizeram com que nunca tantas pessoas soubessem tão pouco sobre tantas coisas. As pessoas ouvem boatos e tomam como verdade e não aprofundam, não se informam. Qualquer populista consegue abrir caminhos em redes sociais. Multiplicam algoritmos e formam opinião pública. O que é perigoso porque, se a democracia é formada, pela vontade da maioria e ela está deturpada, temos um problema. 

Você diz que essa pandemia foi também moral. Como?

Enquanto civilização nunca tínhamos sido confrontados com uma ameaça planetária. A certa altura, vi pessoas informadas que pensavam que ia ser o princípio da extinção da raça humana e foram confrontadas com uma situação limite entre ética, filosofia e política. É como estar no Titanic que vai afundar: percebe-se o fundamento moral de cada pessoa. Quem é que vai ser salvo primeiro, quem vai manter a decência. E assim como houve coisas bonitas, houve coisas muito feias. Em Portugal, conheci um médico que trabalhou 42 dias sem descanso num hospital de covid-19, mas também tivemos um número de baixas médicas que foi o dobro do ano anterior. A grande maioria fugiu. Numa situação limite, fomos confrontados com o que realmente é valioso, e o resultado não foi nada bonito.

Quais são os heróis da pandemia para o senhor?

Os que estiveram mesmo a combater. Os que souberam morrer com dignidade.  Muita gente, heróis anônimos, o caminhoneiros que continuaram a levar comida aos supermercados, lixeiros que continuaram a limpar as ruas, os que não puderam parar e arriscaram estar doentes

Como a literatura pode dar conta disso?

Eu nunca tinha escrito o que se pode chamar de literatura manifesto, foi a primeira vez que fiz porque achei que era preciso. Larguei um outro romance que estava a escrever porque senti o impulso de escrever sobre isso. Foi a primeira vez que achei que tinha que por minha literatura a serviço de qualquer coisa que pudesse ficar para o futuro. Achei que era útil escrever para que ficasse registrado para as pessoas saberem como vivemos e como nos comportamos. A literatura também pode servir para isso, para alertar as consciências. Já escrevi sobre coisas horríveis, mas num passado distante, e a história apaga as coisas, apaga os crimes. E, afinal, a maldade que está na natureza humana não desaparece.

Um dos temas do livro é o envelhecimento. Perdemos a dimensão, enquanto sociedade, do que é envelhecer?

Depende. Esse último ano e meio decidi retirar-me do trabalho. Vou voltar agora outra vez e com muitas dúvidas, porque estar um ano e meio fazendo apenas uma coluna para o jornal, uma vez por semana, foi muito bom porque ficamos atento a muitas coisas, ficamos a saber de coisas que não tínhamos tempo para ver, fica-se a pensar em muitas coisas. Não tenho medo da morte, mas medo de morrer mal e envelhecer mal. Mas, se você consegue amar as coisas da vida e ter mais tempo para elas, ser mais atento a elas, não há angústia e apenas fruição dessas coisas. Mas é preciso ter condições para isso.

Mas e enquanto sociedade?

Temos um problema de fato, inclusive financeiro, que é como pagar a segurança social, que é cada vez mais cara. É um problema grave aqui na Europa, temos um problema de envelhecimento aceleradíssimo. Em 10 anos, teremos praticamente uma pessoa ativa para uma que não está ativa e isso é insustentável. Não sei como se resolve. Acho que os franceses são loucos porque o que eles querem não é sustentável. Estão a envenenar o seu próprio futuro. Eu encaro bem a velhice, gosto muito do tempo que estou a viver, todos os dias agradeço aquilo que tenho, sinto, faço, penso. Não tenho saudade nenhuma do passado. Se a pessoa se mantiver intelectualmente ativa, vai tirar partido da vida como nunca tirou antes. Não trocava a idade que tenho e o que faço pelo tempo de estudante. No fundo, a história da vida é saber gostar da vida em cada momento e curtir o que ela nos dá. Hoje em dia, não tenho nenhuma noção de urgência nem de coisas irremediáveis. E nunca tenho pressa,

Último Olhar

De Miguel Sousa Tavares. Companhia das Letras, 272 páginas. R$ 69,90