TCU Foto: Barbara Cabral/Esp.CB/D.A

Por que os estados resistem em adotar o modelo federal para os Tribunais de Contas?

Publicado em Economia

Por LUCIENI PEREIRA, vice-presidente para assuntos do TCU na ANTC e diretora da CNSP 

A “história é êmula do tempo, repositório dos fatos, testemunha do passado, exemplo do presente, advertência do futuro” (Miguel de Cervantes). Para marcar a abertura do V Congresso Nacional dos Auditores de Controle Externo (Conacon) e celebrar os 10 anos de fundação da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), oportuno fazer um balanço histórico, traçar o diagnóstico da situação atual dos Tribunais de Contas e registrar algumas advertências em relação ao futuro do sistema.

 

A criação do Tribunal de Contas da União (TCU) se deu na esteira do movimento republicano, com a edição do Decreto 966-A, de 7 de novembro de 1890, concretizando ideais que, na verdade, remontavam ao ano de 1822, quando o Brasil proclamou sua independência, acontecimento histórico que este ano completou 200 anos.

 

A edição do Decreto, todavia, não foi suficiente para o Tribunal se tornar realidade, a despeito de todo engajamento e compromisso de Rui Barbosa para implementar um novo modelo de controle das contas públicas, definindo competências para o TCU examinar, revisar e julgar os atos referentes a receitas e despesas do governo republicano. Somente em 17 de janeiro de 1893, Serzedello Corrêa, então Ministério da Fazenda, conseguiu implantar o Tribunal de Contas como pedra fundamental da República. Até então, o controle do gasto público limitava-se a uma ideia de intenção posta no Decreto, posteriormente incorporada ao texto da primeira Constituição Republicana de 1891.

 

Uma vez instalado, não demorou muito para o TCU se revestir da armadura necessária para atuar de forma republicana. Em funcionamento há pouco mais de uma década, já em 1912 as funções de preparação (instrução) e de julgamento dos processos de controle externo foram formalmente separadas, imperando, assim, o princípio da segregação de funções, pressuposto do julgamento imparcial. Com isso, o quadro de pessoal da Corte de Contas foi dividido entre Corpo Deliberativo (julgadores) e Corpo Instrutivo, este integrado de Auditores de Controle Externo incumbidos da instrução processual.

 

A exigência de quadro próprio de pessoal como condição para qualificar o funcionamento imparcial do TCU veio na sequência, passando a integrar o texto constitucional desde 1946. Nem mesmo nos períodos de chumbo, a segregação de funções e o quadro próprio de pessoal foram abolidos pelo TCU.


Embora há 34 anos a Constituição
e o STF exijam quadro próprio de pessoal dos Tribunais de Contas, em Sergipe, o número de cargos comissionados (216) representa 87% de todo quadro próprio de pessoal do Tribunal de Contas, integrado por 248 servidores efetivos e vitalícios, no que supera 671% o limite legalmente estabelecido para o modelo federal (TCU), que mantêm 28 cargos comissionados, conforme limite fixado pelo art. 110, inciso IV da Lei nº 8.443, de 1992. E a extravagância em Sergipe não se limita aos comissionados; igualmente destoa o quantitativo de servidores públicos civis e militares cedidos ao TCE-SE, no total de 84 agentes públicos, número maior do que os 83 cargos efetivos e vitalícios legalmente habilitados para o exercício da função típica de controle externo.

 

Competências

 

Além de definir as premissas orgânicas para o regular exercício do controle externo, a Carta Cidadã de 1988 ampliou as competências e elegeu o TCU como modelo para simetria de organização e funcionamento dos 32 Tribunais de Contas estaduais e municipais. A despeito da índole constitucional, os entes subnacionais insistem em remediar o cumprimento do artigo que exige a simetria, adormecido de profundo sono de que raramente acordam as ideias úteis, especialmente as que podem criar embaraços ao patrimonialismo colonial do qual a República ainda não conseguiu de todo se livrar.


A
estrutura orgânica que o Congresso Nacional definiu para o TCU é essencial para democratizar o processo de controle externo e conferir legitimidade às decisões colegiadas, que, apesar dos avanços, não raras vezes, são naturalmente questionadas. No último dia 7, o TCU completou 132 anos em meio à intensa discussão sobre sua competência para fiscalizar o sistema eletrônico de votação desenvolvido e mantido pela Justiça Eleitoral (urnas eletrônicas).


Q
uestionamento desse tipo não é novidade, Floriano Peixoto também questionou as competências do TCU, porque não liberou o pagamento de salário de um de seus apaniguados, ordem corajosamente recusada pela instituição secular. O conflito levou Serzedello Corrêa a pedir demissão do cargo de Ministro da Fazenda em 27 de abril de 1893, confusão da qual o TCU saiu fortalecido. Por esta razão, a data foi escolhida para celebrar o Dia Nacional do Auditor de Controle Externo do Brasil, anualmente marcada por uma agenda nacional que remonta aos fatos do passado para discutir a situação do presente e pensar o controle externo do futuro.

 

Disfunções

 

As disfunções das Cortes de Contas estaduais por vezes são questionadas no Supremo Tribunal Federal. Até que, em 2016, o STF afastou o efeito das decisões dos Tribunais de Contas estaduais e municipais para fins de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa, mesmo quando se trata de julgamento de contas de chefes do Executivo na condição de ordenadores de despesa (Recurso Extraordinário nº 848.826). O tema, dada a sua repercussão geral, foi priorizado na agenda do I CONACON, que contou com a palestra magna do relator, Ministro Luís Roberto Barroso. O recurso extraordinário foi interposto contra decisão do TCM-CE, que, de tão disfuncional, foi extinto pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará meses depois.

 

Não se pode ignorar que o risco de questionamento das competências do controle externo e ataques pela via judicial são potencializados pelas disfunções e resistência de alguns Estados-Membros em observar o mandamento constitucional, que elege a organicidade do TCU como parâmetro nacional, especialmente no que concerne à essencialidade de manifestação técnica do órgão de instrução, à preservação das unidades técnicas com direção unificada no órgão de instrução, à segregação das funções de instrução e julgamento, à independência dos Auditores e à fundamentação das decisões dos julgadores.

 

São matérias que, há pelo menos três décadas, estão disciplinadas na Lei Orgânica do TCU, de modo que quem atua na fase de instrução, ou seja, apura os fatos e identifica os responsáveis, não pode participar da fase de julgamento, nem vice-versa. É regra básica que busca garantir a imparcialidade do julgamento e que, de longa data, consta do Código de Processo Civil como causa de impedimento do magistrado (art. 144, I e II).

 

E é também para garantir o julgamento imparcial que a Lei Orgânica do TCU impõe o poder/dever de o Auditor de Controle Externo atuar com independência. Nada há de corporativista nessa regra. Ao contrário, a garantia legal de independência do Auditor é, a rigor, a garantia da sociedade e, particularmente, dos acusados de que o processo será analisado de modo isento, por agente público que tem proteção legal para dizer de acordo com suas convicções técnicas, sem ceder a pressões e quaisquer outras interferências ilegítimas.

 

Manifestações


Por outro lado, a exigência de fazer constar do relatório do relator a manifestação do órgão de instrução é importante ônus do qual o julgador deve se desincumbir, a fim de que o Tribunal de Contas respeite o dever constitucional de fundamentação das suas decisões, inclusive e principalmente quando for em sentido contrário ao da manifestação técnica. Os Ministros do TCU convivem com essa regra básica de segregação de funções há um século, de modo pacífico e respeitoso. Não há fundamento jurídico, seja constitucional ou legal, nem de ordem prática, seja nacional, regional ou circunstancial, que ampare a insustentável realidade atual em que, por desrespeito a essa regra, vários Conselheiros têm mais poder do que os Ministros do TCU.

 

Desnecessário frisar que a competência do relator para presidir a instrução do processo prevista no art. 11 da Lei Orgânica do TCU em nenhuma hipótese é antagônica à segregação das funções de instrução e julgamento ou à independência dos Auditores. Ao contrário, presidir a instrução do processo é garantir a sua validade e impulsionar o seu andamento, mediante os despachos necessários, tais como a diligência e a citação do acusado.

 

Como se vê, cuida-se de competência também prevista no processo judicial, mas que em nada se confunde com o respeito à segregação das funções de instrução e julgamento, tampouco com o respeito à independência do Auditor quanto ao mérito do processo.

 

Se, ao final do Século XIX, com todas as circunstâncias conturbadas de instalação da república, os ideais de Rui Barbosa ficaram adormecidos por dois anos, o desafio do Século XXI é despertar a simetria constitucional do estágio de sono profundo de três décadas, pois é a pedra angular para a preservação do atual modelo de controle externo brasileiro.


A resistência
, injustificável, dos Tribunais de Contas estaduais e municipais em seguir o modelo federal parece mais uma herança do patrimonialismo que marcou o Estado colonial e o início conturbado da República. Nem mesmo as decisões pacíficas do STF sobre a necessidade de adotar o modelo federal (TCU) têm sido suficientes para uniformizar a organização e funcionamento dos Tribunais de Contas.

 

Foi nesse contexto de disfuncionalidades que geram insegurança jurídica para os fiscalizados e colocam em xeque a credibilidade das decisões dos Tribunais de Contas — quiçá de todo sistema de controle externo —, que o Advogado e Deputado Fábio Trad (MS) apresentou o Projeto de Lei Complementar 79, de 2022, que tramita na Câmara dos Deputados sob a relatoria do Professor e Deputado Israel Batista (DF), cujo texto marca, à altura, a celebração do bicentenário da independência, dos 132 anos de criação do TCU e dos 10 anos de fundação ANTC.

 

Finalidades

 

A proposta legislativa tem por finalidade estabelecer, de forma objetiva, o padrão nacional mínimo para a fiscalização financeira da Administração Pública federal, estadual e municipal, com racionalização e simplificação dos portais centralizados mantidos pela União para declaração e divulgação de despesas com saúde, educação, previdência e gestão fiscal de todos os entes da Federação, padrões mínimos para organização do controle interno, maior participação da sociedade na definição de mecanismos de visibilidade do gasto público, prazo para julgamento de contas pelas Casas Legislativas. Propõe, ainda, a fixação de balizas mínimas para fazer valer a simetria que orienta a organização e funcionamento dos 32 Tribunais de Contas estaduais e municipais, que devem observar o modelo federal definido desde 1992 para o TCU.

 

A oportunidade e relevância da proposta são inquestionáveis. Pesquisa realizada para comparar as leis orgânicas dos Tribunais de Contas aponta o desafio, no atual estágio, de concretizar os ideais da cidadania consagrados na Constituição de 1988.

 

Nas leis orgânicas dos 33 Tribunais de Contas, apenas 24%preveem que a manifestação técnica dos Auditores de Controle Externo no órgão de instrução seja essencial para a validade das decisões dos órgãos colegiados (julgadores), exigência clara na lei orgânica do TCU há três décadas; 30% dispõem sobre um órgão de instrução na estrutura do Tribunal de Contas para congregar todas as unidades técnicas responsáveis pela realização das auditorias, inspeções e demais procedimentos de fiscalização, de modo a garantir, na prática, a segregação de função que o TCU adota há um século; e somente 52% trazem dispositivos que definem, no rol de obrigações dos Auditores de Controle Externo, a atitude de independência quando estiverem no exercício das atividades de fiscalização.


No quesito
segregação entre as funções e independência profissional dos Auditores de Controle Externo, a Região Sudeste é a que apresenta o pior desempenho no grau de simetria com o modelo federal. Dos 6 Tribunais de Contas da Região em questão, apenas um deles menciona o órgão de instrução em sua lei orgânica como mecanismo garantidor da segregação e de unidade das instâncias técnicas e outro prevê a atitude de independência como um dever a ser observado pelos Auditores de Controle Externo durante as fiscalizações.

 

Valores


Um dos valores do
PLP nº 79/2022 é estabelecer, de forma objetiva, o padrão mínimo de simetria para organização e funcionamento regular do controle externo de acordo com o modelo federal, além de fixar prazo para o TCU encaminhar um projeto de lei para o Congresso Nacional aprovar um código nacional do processo de controle externo, à semelhança do Código de Processo Civil que orienta o processo judicial nos Tribunais de Justiça de todo País, Tribunais Superiores e STF.

 

As fragilidades institucionais dos Tribunais de Contas estaduais impõem uma reflexão sobre o modelo de controle externo brasileiro cotejando com o grau de desenvolvimento institucional das esferas. Não há dúvida de que o controle externo é fundamental à qualidade democrática de um Ps, porém, não há primazia de um modelo sobre o outro. Não é razoável o Congresso Nacional estabelecer um modelo único de controle externo para todos os entes da Federação, seEstados-Membros que não seguem as condições institucionais mínimas para conferir imparcialidade ao processo de controle externo e assegurar as garantias processuais que o constituinte conferiu, desde 1988, aos jurisdicionados (fiscalizados).

 

O tema não pode ser tratado como tabu para perpetuar um modelo disfuncional nos Estados-Membros, jogando para escanteio direitos subjetivos dos fiscalizados. Deve-se considerar que, embora os Municípios disponham de autonomia político-administrativa tal como os Estados, os entes municipais não podem instituir e manter Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Tribunais de Contas, Polícia Judiciária. São instituições cujas atividades afetam direitos subjetivos de terceiros, razão pela qual devem observar padrões nacionais de organização e funcionamento definidos em normas gerais pelo Congresso Nacional.


No mesmo sentido, é
oportuno discutir se os Estados podem manter Tribunais de Contas com poder de julgamento e de aplicação de sanção e medidas restritivas, se muitos deles permanecem arraigados a um padrão de governança frágil e disfuncional como a pesquisa expõe, num modelo totalmente assimétrico em relação ao parâmetro constitucional e legalmente definido para o TCU.

 

Não é possível permitir que pessoas físicas e jurídicas fiquem sujeitas a sanções e restrições severas, a exemplo do bloqueio de bens, declaração de inidoneidade de empresas que contratam com a Administração Pública e inelegibilidade por 8 anos, além da multa e ressarcimento do dano ao erário, aplicáveis por Tribunais de Contas estaduais e municipais com índices sofríveis de governança que ignoram as garantias processuais dos fiscalizados, além de criar um ambiente de insegurança jurídica.

 

Grau de Simetria dos Tribunais de Contas com o TCU

Região

Número de Tribunal de Contas

Essencialidade da Manifestação do Órgão de Instrução para Validade das Decisões

Órgão de Instrução para Reunir as Unidades Técnicas eGarantir aSegregação de Funções

Previsão de Independência como Dever do Auditor de Controle Externo

Nacional (TCU)

1

1

1

1

Região Centro-Oeste

5

0

1

2

Região Nordeste

10

4

2

6

Região Norte

8

3

4

5

Região Sudeste

6

0

1

1

Região Sul

3

0

1

2

Total

33

8

10

17

24%

30%

52%

Fonte: Pesquisa realizada após audiência pública realizada na CTASP em 8/11/2022