Rupi Kaur e a poesia que veio da rede

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Vamos falar sobre essa moça, essa Rupi Kaur, nascida na Índia, de nacionalidade canadense, detalhe importante para os versos que ela escreve. Você já deve ter ouvido falar dela. Rupi ficou famosa nas redes sociais com poeminhas feministas, versos curtos, ora contundentes, ora simplórios e infantis demais, o que já rendeu boas críticas por aí. Milk and honey, publicado no Brasil como Outros jeitos de usar a boca, vendeu um milhão de cópias e saiu no Brasil em 2015. A nova edição da Planeta vem com capa dura e os poemas em inglês, língua original da escrita da autora. Falando de traumas, sobrevivência, dor e cura, mas também de amor, raça e relacionamentos, a poesia de Rupi causa uma certa emoção mesmo naqueles que não compartilham sua origem sofrida e complicada.

 

Rupi é originária do Punjab, região do norte da Índia, bem na fronteira com o Paquistão, uma zona de conflitos históricos e violentos. Ela também é sikh, uma etnia massacrada e perseguida. E claro, é mulher. No prefácio, faz uma rápida autobiografia e conta que venceu a primeira batalha quando sobreviveu ao próprio nascimento. Feticídio de meninas é prática comum em algumas famílias indianas. Filha de refugiado sikh que emigrou para o Canadá para fugir do genocídio, ela deixou a Índia aos três anos para encontrar o pai em Montreal. Adolescente, sentiu enorme necessidade de escrever em punjabi, língua cuja a escrita, o gurmukhi, tem como única pontuação o ponto final. Por isso os versos de Rupi não têm maiúsculas nem qualquer outra pontuação.

Sucesso nas redes

Crédito: Naomi Wood
Crédito: Naomi Wood

A necessidade de escrever veio porque ela percebeu que os traumas vão além das fronteiras do tempo. A infância de Rupi pode não ter sido das mais traumáticas, mas uma quantidade enorme de gerações anteriores enfrentaram a dor de não terem direito sobre o próprio corpo. “Eu penso na violência sexual que sofremos como mulheres sul-asiáticas. Nós a conhecemos intimamente, das centenas de anos de desonra e de opressão”, escreve. “Nos ensinam que nosso corpo não é nossa propriedade. Serve para seguir as ordens de nossos pais até que eles transfiram a propriedade ao seu marido e a sua família. Uma boa garota indiana fica quieta. Obedece as ordens. O sexo não lhe pertence, é algo que lhe acontece na noite de núpcias. Nosso papel é deitar com obediência, não sentir nada.”

Rupi tem 25 anos. Faz parte de uma geração de poetas que encontraram eco nas redes sociais e começaram ali suas experiências. Seus versos podem ser simples – e alguns chegam a ser ingênuos ou mesmo apropriações de clichês de autoajuda – e a crítica até procede, mas há um certo lirismo na maneira como ela e outras de origem semelhante expressam a raiva em relação ao sexismo e às questões de raça. Rupi conversa com sua geração de maneira direta e simples. Se daí o mergulho na poesia for uma consequência, ótimo!

2017. Crédito: Planeta/Reprodução. Vitrine dia dos namorados. Capa do livro "Outro jeitos de usar a boca" de Rupi Kaur.
2017. Crédito: Planeta/Reprodução.

Outros jeitos de usar a boca

De Rupi Kaur. Planeta, 272 páginas. R$ 44,90

Aqui uns versinhos de Outros jeitos de usar a boca….

 

eu era música

mas suas orelhas tinham sido cortadas

por primos

e tios

e homens

nossos corpos manipulados

pelas pessoas erradas

que mesmo numa cama segura

sentimos medo

 

quando minha mãe abre a boca

para conversar durante o jantar

meu pai enfia a palavra silêncio

nos seus lábios e diz que ela

nunca deve falar com a boca cheia

foi assim que as mulheres da minha família

aprenderam a viver com a boca fechada

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