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Romance sobre mundo corporativo faz retrato da classe média brasileira

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Normalmente, o escritor Marcelo Ferroni é um pessimista cético. Mas houve um momento, entre 2013 e 2014, em que foi ingênuo e acreditou em, digamos, um futuro digno para o Brasil. Era véspera de Copa e Olimpíadas e o Rio de Janeiro parecia caminhar para um estado de mudança positivo. Durou pouco. O desencanto voltou e ele tem um reflexo imediato em O fogo na floresta, terceiro romance do autor, um desses livros que é difícil largar uma vez iniciado. E ele trata justamente do vazio instalado na classe média brasileira, de sua decadência e voracidade, da vontade de obter mais a qualquer custo.

Heloísa, a personagem de Ferroni, é uma executiva enfronhada no mundo corporativo, nas briguinhas e intrigas de uma grande empresa, na própria vaidade, ancorada na certeza de que ela é a estrela e os outros são imbecis. O barco de Heloísa é o mesmo que transporta a classe média brasileira, mas está furado. E ela vai naufragar aos poucos, sem sequer se dar conta, sem conseguir forrar o chão para ampará-la da queda, sempre focada no curto prazo, no imediatismo e na superficialidade. O casamento vazio com Matias, o filho Robertinho, o “menino” que mais parece um obstáculo para as ambições da personagem, o consumismo  bobo e fora de propósito depois de uma demissão anunciada, tudo em Heloísa é pensado para despertar a antipatia do leitor.

Ferroni não disfarça. Seu narrador é deliciosamente irônico. É tão direto e preciso que mal dá tempo de gerar sentimentos complacentes em relação à personagem. Com sarcasmo,  descreve o mundo corporativo como um cercadinho habitado por seres individualistas e deprimentes, condenados a essa condição porque precisam sobreviver. “Se o pirão é pouco, o meu primeiro” poderia ser o lema desse universo.  

Há muito Ferroni queria escrever um livro  relacionado ao trabalho. Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura com Método prático da guerrilha (2010), um thriller sobre os últimos dias de Che Guevara, e autor do policial Das paredes, meu amor, os escravos nos contemplam (2014), havia decidido embarcar em uma narrativa mais realista, mais ligada ao Brasil contemporâneo. Escolheu exatamente uma editora para situar o livro. Questão de comodidade, já que ele mesmo é editor da Alfaguara e conhece bem os termos e a dinâmica desse tipo de empresa. Em entrevista, Ferroni conta como concebeu o microcosmo de Heloísa aos moldes do macrocosmo brasileiro.

fogo na floresta

O fogo na floresta

De Marcelo Ferroni. Companhia das Letras, 302 páginas. R$ 44,90

Entrevista: Marcelo Ferroni

O livro sobre o mundo corporativo como se fosse um microcosmo do que vivemos hoje em sociedade. Mas também fala do trabalho e seu lugar na vida das pessoas. Por que esse tema?

Meu primeiro romance era quase um htriller, o segundo, um policial. Eu queria fazer um livro, digamos, normal, um livro realista, que se passasse nos dias de hoje, no Rio, onde moro há 11 anos. O livro foi surgindo à medida que os anos foram passando. E eu tinha a ideia de fazer um livro sobre trabalho, que é uma coisa que ocupa muito as nossas vidas. A gente passa a maior parte do tempo trabalhando, vai para casa e, às vezes, continua trabalhando.

Você disse que queria fazer um livro menos irônico, já que a ironia marca seus outros livros. Mas há certa ironia no narrador….

O livro tem esse lado mais realista. Sim, eu queria fazer um livro menos irônico e não consegui. Sempre vejo essas estratégias de trabalho com uma certa ironia e não consegui me livrar totalmente disso. Então tem a semelhança com os outros livros. Mas quis fazer um livro onde não tivesse assassinatos nem mortes violentas, que fosse realmente sobre essa família de classe média. Desde o início pensei em fazer essa personagem chamada Heloísa como uma protagonista feminina.

É também uma história de desencanto essa, né?

É muito ligada com nossas vidas. Acho que para as pessoas que têm o trabalho massacrante, em uma empresa grande, com todos os problemas, talvez se identifique. Pego muito dessa experiência. Até  tentei fazer um livro que se passasse em outra área. A ideia inicial era que fosse numa assessoria de imprensa, uma agência de comunicação. Comecei a levantar  material, mas senti que não ia ter aquela coisa do dia a dia, os termos. Então migrei para um editora, que tenho mais experiência e que passa um pouco por redação de jornal.

É um retrato da nossa classe média e do vazio que a invade?

Eu tinha pensado nisso um pouco por alto, tinha pensado na história de uma mulher muito insatisfeita que estivesse sempre atrás de mais coisas e que passasse por viradas na vida. Comecei a escrever o livro em 2013, o Rio estava passando por uma transformação. A gente achava. Eu morava em Copacabana e vi que o bairro estava sendo revitalizado  por causa das Olimpíadas e da Copa, que o Rio podia,  finalmente, entrar nos eixos. O livro começou a ser escrito num Rio de Janeiro em ascensão, que estava começando a se tornar uma cidade muito melhor do que ela é. Enquanto fui fazendo, a cidade foi desmoronando. Isso influenciou muito a forma como fiz a narrativa. A personagem vive num Rio onde está todo mundo tentando  se aproveitar e você vê que as coisas vão virando. O livro termina no início do ano da crise. É um livro sobre essa desesperança também, falando dessa situação brasileira.

“Um povo feio e flácido, mulheres nas suas roupas apertadas de oncinha gritam, riem, mexem umas com as outras. Filhos obesos, Heloísa odeia barulho. Este é o país em que vivemos, pensa ela. O sol bate forte, apesar da época do ano, e os pássaros do viveiro, logo na entrada, se refugiaram na sombra do alambrado. Há uma galinha boiando na lagoa que pode estar morta.” A classe média brasileira é a galinha morta na lagoa?

Sim, é uma coisa totalmente ligada. É uma classe média que já é decadente, que está indo para um colapso porque não consegue parar, quer sempre mais. É preconceituosa, olha as outras classes achando que são piores. A personagem entra nesse zoológico já fazendo um comentário de juízo de valor, sem perceber que ela está tomando decisões sem pensar nos outros, sem o menor cálculo e em proveito próprio. Então, sim, tem a ver com a classe média.

Figuras como a Heloísa são muito comuns no mundo corporativo? Ela é um estereótipo desse mundo?

Sempre tem alguma história de pessoas que a gente conhece. Dependendo da empresa na qual você trabalha, você passa mais tempo resolvendo brigas internas e intrigas do que trabalhando pra fora. As pessoas têm essas rixas, essa coisa de querer se dar melhor, de mostrar mais um serviço para o chefe, de derrubar os outros, e não olha que faz parte de uma coisa maior, que deveria estar fazendo outra coisa. Essa questão da sobrevivência a qualquer custo e sem o menor pensamento de longo prazo se reflete numa vida em família, na forma como as pessoas cuidam da sua cidade, como agem perante o mundo. Às vezes, a gente vê numa empresa esse microcosmo que são pessoas querendo pisar umas nas outras.

Você sente isso no mundo editorial?

As editoras são menores, elas não são empresas grandes. Pensei numa empresa que fosse uma coisa monumental. As editoras têm uma estrutura menor e, quando isso acontece, é de forma mais diluída. É um cosmo menor.  

O livro é fruto de um desencanto com o Brasil? O que é o Brasil para você hoje?

Totalmente. Sou muito cético, talvez isso reflita nos meus livros. Tento ver as coisas com humor, mas as pessoas me acham um pouco pessimista. Tento rebater, mas nem sempre funciona. Mas eu até estava me impressionando positivamente. Pela primeira vez, senti que ia ter uma mudança entre 2013 e 2014.

Você foi ingênuo?

Eu acho, totalmente ingênuo. Comecei a perceber que tinha sido ingênuo pouco antes das Olimpíadas, mas já tinha passado a Copa. Demorei para me dar conta e ver que as coisas não eram aquilo que pareciam. É um livro um pouco pessimista em relação à situação que a gente vive e ao que o Brasil está fazendo no dia a dia, com a questão do abandono do Rio de Janeiro, a violência. Quando você vê o Pezão falando na tevê, sem a menor preocupação, que os policiais não recebem dinheiro, que não tem dinheiro pra saúde. Isso acontece até no governo federal. Vai de tudo, das pequenas coisas que as pessoas fazem até a esfera maior de poder.

É a pior fase do país dos últimos 50 ou 100 anos?

Putz, não saberia dizer. A gente nunca sabe como era. Imagino que o nível de corrupção devia ser enorme no governo militar. É que a gente não tinha tanto acesso. Acho difícil saber se está pior, mas não está melhor. Tem algumas coisas andando, mas a gente está vendo o processo da lava jato, tem excessos, algumas coisas que eles fazem soam estranhas. Então não tem um lado no qual você possa confiar.

A mentalidade da sociedade brasileira se degradou?

Fico na dúvida. Melhorar, não melhorou. Não sei se ela sempre foi assim e foi ficando mais escancarada. Parecia ter uma leve melhora no poder público, achamos que as coisas podiam melhorar, começou a diminuir o nível desigualdade e teve uma alternância de poder quando o Lula entrou. No longo prazo, se mostrou que não era melhor que os outros.  O desencanto com a política talvez esteja num nível muito grave e sem muita perspectiva até agora.

No meio do livro, há uma descrição de uma expedição fracassada à Antártida, um episódio no qual a falta de planejamento e as intrigas acabam levando todos à morte. Como essa situação se relaciona com a história e com a realidade?

É sobre essa falta de preocupação com o outro, essa falta de planejamento feita desde a pequena escala até a escala grande. A gente vê a Heloísa achando que é perseguida, que é uma executiva ótima, que foi injustiçada, que os outros são idiotas, mal educados. Ela está indo para um abismo. Aquilo é um caso maior de falta de planejamento, eles tentam repetir a expedição do Endurance, que vira uma tragédia, uma farsa. No final, todos são tragados pelo gelo. É isso. Você vai fazendo coisas sem pensar até a hora que, nesse caso, a natureza toma conta e realmente fecha os expedicionários no gelo. Achei que podia ser uma coisa curiosa. Essas pessoas no barco, as coisas dando errado, esse time que não se entende, tudo é uma outra dimensão do que está acontecendo com a Heloísa.

Se a natureza tragasse tudo de volta e se resolvesse, não seria um bom final?

(risos) Não sei se a gente gostaria estar no meio dessa vingança. Você vê, no Rio, como está sendo tratada a questão sanitária, a poluição, a falta de saneamento… Não há nenhuma iniciativa para melhorar nada. A gente vai rumando para essa catástrofe mesmo. E no livro, ela acontece.