CBNFOT060220190173 Crédito: Lole/Reprodução.

Nova edição de ‘Reinações de Narizinho’ discute racismo e machismo

Publicado em feminismo, história, ilustração, lançamento, leitura, livro, machismo, racismo, Sem categoria, violência

É interessante a solução encontrada por Marisa Lajolo e pela Companhia das Letras para lidar com o racismo incutido em Reinações de Narizinho. Ficou decidido que as personagens de Emília e Narizinho questionariam os termos polêmicos, mas também aqueles menos corriqueiros nos dias de hoje, além das palavras um pouco mais rebuscadas. A solução funciona muito bem nos dois últimos casos e é até divertida, mas nem sempre convence quando se trata do ranço racista do autor. É difícil justificar o injustificável, mas é melhor que se aponte os trechos e se fale sobre eles do que deixá-los soltos. É sempre bom lembrar, no Brasil de hoje e especialmente para as crianças, que racismo, preconceito e machismo existem, estão até na nossa literatura e não se pode fazer vista grossa para eles.

Crédito: Lole/Divulgação

 

“Acrescentamos  as notas de rodapé sobre as passagens difíceis de entender ou que são polêmicas. Mas é uma nota de rodapé também ficcional, que é diferente de ser uma nota de rodapé do professor. Acho que é uma forma de atualizar o Lobato com a mesma irreverência com que faz tudo na obra dele”, avisa Marisa, pesquisadora especialista no autor e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

É logo na primeira página que a confusão toma corpo. No terceiro parágrafo do primeiro capítulo, o narrador se refere a Tia Nastácia como uma “negra de estimação”. No rodapé, Emília questiona e Narizinho responde: “Estimação vem de ‘estimar’, que quer dizer ‘gostar’. Essa expressão era muito usada no começo do século XX. Fazia poucas décadas que a escravidão tinha terminado e alguns costumes e falas permaneciam. Mas isso não é jeito de chamar ninguém!”. Valia ser  um pouco mais direto na condenação do uso da expressão e não associá-la a um verbo que representa exatamente o contrário da violência contida no termo. Mais pra frente, o leitor esbarra em “negra beiçuda” e a nota fica um pouco mais incisiva: “Lembra aqueles resquícios da escravidão de que estávamos falando? É mais um desses! Hoje em dia não é mais aceitável falar desse jeito!”.

 

Em outro trecho, Emília é acusada de feia, “mas muito boa dona de casa”.  No rodapé, Narizinho explica para a boneca que, na época, as mulheres eram valorizadas por serem boas nos afazeres domésticos, mas hoje elas trabalham fora e é muito bom isso ter mudado. Pois sim, também há machismo em Monteiro Lobato e, claro, é preciso compreender o contexto no qual o livro foi escrito, mas com tantas obras para crianças que hoje investem em desconstruir o mundo machista fica difícil não olhar torto para a narrativa.

Crédito: Lole/Divulgação

A diversidade foi outra preocupação dos editores. Lá pelas tantas, Narizinho repara que o reino das abelhas é muito bonito e que ali “não se vê um aleijado, um cego, um tuberculoso”. Como explicar que as imperfeições e as diferenças são parte da condição humana e não um defeito?  Narizinho, na nota de rodapé, volta atrás e repara que a diversidade é bem-vinda em pessoas e bichinhos.

 

Mais adiante, trata-se de racismo novamente quando Emília dispara “Foi de tanto tomar café que tia Nastácia ficou preta assim”. Lá embaixo, Narizinho explica que beleza não tem a ver com cor e que nem que Emília comesse todas as jabuticabas do mundo ficaria com o cabelo roxo, por isso não haveria lógica na afirmação estapafúrdia da boneca. E ainda há outros exemplos mais constrangedores, em que Emília ofende Tia Nastácia e em que nós, leitores, nos perguntemos como lidar com uma obra que ajudou a formar boa parte dos leitores brasileiros. Pode-se evitá-la, claro, mas também pode-se usar o veneno para criar o antídoto. Afinal, Lobato está aí, ao alcance de todos, então é melhor ir logo explicando que há coisas erradas do que fingir que não existem.

 

Não discuto que a obra manifeste preconceito contra o negro, mas isto é uma questão da sociedade brasileira, a sociedade brasileira é assim até hoje”, acredita a pesquisadora Marisa Lajolo, responsável pela organização de Reinações de Narizinho. Para ela, as notas de rodapé foram uma solução mais viável que o eventual apagamento dos trechos em que há manifestações racistas por parte de Lobato. “Eu acho que fazer esse apagamento dessas marcas é ruim, é um desserviço não só à literatura e ao Lobato, mas aos movimentos sociais. Você tira um documento, uma forma de documentação dos valores étnicos e preconceituosos da sociedade brasileira”, diz.

 

Reinações de Narizinho

De Monteiro Lobato. Companhia das Letrinhas, 248 páginas. R$ 64,90