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O preço da liberdade

Publicado em Crônica

O inferno são os outros, decretou Jean-Paul Sartre. É uma angústia que vem na mesma proporção da liberdade que os seres humanos têm de decidir sobre a própria vida, quase que na forma de uma condenação. Talvez isso explique – ou provavelmente não – o desprezo pela própria existência demonstrada por pessoas que se recusam a se proteger da covid-19.

O mundo viveu tempos mais simples, quando o inferno era a principal diferença entre humanos e animais. O medo de queimar eternamente entre tições ardentes, marcou o início da civilização, principalmente depois que Moisés desceu o monte Sinai com a tábua que separava os pios dos pecadores, definindo que os maus passariam a eternidade calcinados.

Já se passaram mais ou menos 4.500 anos, mas nem aquelas 10 regras básicas para a civilização deram jeito na humanidade. Ainda faltam provas para acreditar que o homem é intrinsecamente bom e o que o estraga é o meio ambiente – como defendem os existencialistas.

Menino, fiz metade do curso primário em colégio de orientação pentecostal e metade em colégio de padres (os pais fazem de tudo para bagunçar a cabeça da gente). De um lado hinos de louvor herméticos e incompreensíveis para a petizada, de outro a fúria do todo poderoso que tudo vê, tudo sente e tudo julga, auxiliado por homens santificados, esses pintados com as cores da bondade, mesmo quando portam espadas afiadas.

Dos dois lados, palavras sulfurosas, repletas de culpa, dirigidas aos pecadores – todos nós. Mesmo jogando luzes sobre a igreja católica o Papa Francisco continua dizendo que “o diabo existe, não é um mito”, que somos assediados pelo tinhoso a todo momento e que ele entra sempre pelo bolso. Mas parece que há uma falta de fé no mercado.

Mas é o homem que nos interessa. Esse subproduto do divino, mal-acabado, e que, portanto, desafia a fama de perfeição do Criador. Pessoas têm espicaçado a razão por diversos motivos, o que nos leva mais uma vez aos existencialistas, no caminho aberto por Kierkgaard sobre o sentido que damos à própria vida.

Sartre defendia que somos livres para decidir o que fazer da vida. Mas muitas vezes nossos projetos pessoais se conflitam com o projeto de vida dos outros – o inferno, na definição do pensador. É onde a liberdade encontra seu limite.

O que acontece nestes tempos de pandemia, afora a política de baixo calão exercida por aproveitadores, é exatamente essa luta. Não há viva alma que não tenha sido impactada pelas informações disponíveis, numa tempestade de notícias que chega a incomodar pela repetição, mas que é absolutamente necessária, embora se revele inócua.

Em alguns países onde a solidariedade ainda é um valor, as medidas de segurança individual contra o vírus resultaram positivas, pelo simples fato de que lideranças foram capazes de convencer as pessoas. No Brasil de hoje há uma crise de autoridade que está na raiz dessa vitória do instinto sobre a razão. Faltam líderes. Falta disciplina, civilidade. Mais um pouco, estaremos latindo e uivando, até porque já estamos abanando o rabo.

Publicado no Correio Braziliense em 14 de março de 2021