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Noite fria, papo quente

Publicado em Crônica

Nada como um polemista da velha escola. Provocar cizânia nas redes sociais é fácil; basta cavoucar os instintos mais primitivos e, freudianamente, despejar aleatoriamente o subproduto que vier à tona. E o fundamentalismo assume o comando, como vemos nessa insana disputa para decidir quem é o menos canalha da vida brasileira.

Diferente é o polemista que desafina o coro dos contentes. Marreta anda sumido do bar; sinal dos tempos duros que vêm com o avanço da idade e que exigem períodos de abstenção. Ainda assim, é sempre lembrado, até porque virou verbo: quando alguém faz alguma afirmação muito peremptória, entre nós está a ‘marretar’.

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Ele tem certeza, por exemplo, que o homem nunca foi à lua. Não chega a ser incomum encontrar algum cético que acha impossível que um foguete tenha lançado um satélite pequeno com três pessoas dentro, e que duas saíram para passear naquele poeirão, fincaram uma bandeira e desalojaram São Jorge e o dragão. Estranho é que o Marreta é engenheiro; está longe de ser um ignorante.

Ano que vem a proeza faz 50 anos, mas ele insiste que é tudo produção de Hollywood. E desfia uma série de argumentos que deve ter recolhido daqueles jornais com notícias falsas que circulavam anunciando mais uma aparição do chupa-cabra ou do Elvis. No bar, sabe-se, tudo vira assunto; e quando rende uma discussão, melhor ainda.

Mas naquela noite, tão fria que forçou a substituição da cerveja pelo conhaque de gengibre, apareceu um sujeito que poucos tinham visto por ali. Ele entabulava uma conversa em outra mesa, mas não houve como não prestar atenção, senão pelo volume, pelo tema. Aliás, é preciso esclarecer que, na ética do botequim, não é feio prestar atenção na conversa alheia; ao contrário, é imperativo participar de todo assunto.

O rapaz era um terraplanista. Sabíamos do movimento, mas é estranhamente fascinante ver que realmente existe quem sustenta que o planeta é plano, cercado por um muro de gelo e sob um domo que abrigaria o sol e a lua (não explicam os outros planetas). E derramava teorias que deixam os absurdos do Marreta no chinelo.

Ainda citou terraplanistas famosos – como o jogador de basquete Shaquille O’Neal, o que é compreensível, porque ele é tão alto que vive com a cabeça nas nuvens. Em comum com o nosso Marreta, há a certeza de que o homem nunca foi à lua.

É bom esclarecer que nossa mesa era formada apenas por globalistas, como são chamados os que sabem que a Terra é redonda, até porque estudamos que o português Fernão de Magalhães levou quatro anos para navegar em volta do planeta – terminou a viagem em 1522. Ademais, são contrários à única Lei respeitada em toda parte do mundo, a lei da gravidade.

Mas o Faixa, que sempre chega depois, foi quem tirou o sujeito do sério quando disse que havia tomado vacina contra a gripe. Com o rútilo olhar da certeza, o rapaz disse: “Nunca mais faça isso. Vacinas matam!”. Aí a conversa esquentou a noite.

Publicado no Correio Braziliense em 25 de maio de 2018