A capital de madeira

Publicado em Crônica

O mundo conhece Brasília por causa do concreto mas, logo depois do ermo, o que deu forma à cidade foi a madeira, que ergueu os prédios provisórios e vilas inteira – como a Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, e até a Vila Amaury, que está no fundo do lago Paranoá. E se o concreto já está rachando, imagine os pedaços de pau.

A história dessas construções precárias vem sendo preservada aos trancos e barrancos, e graças a ação de um grupo de pioneiros que não se conforma de ver a capital limitada à paisagem dos grandes palácios e luta para manter a memória dos barracos seminais. Para eles, a verdadeira alma da cidade está nos prédios que antecederam os palácios.

Começou com o Catetinho, primeira sede presidencial da nova capital. Certamente, não foi projetado por Niemeyer para durar tanto tempo; quase foi comido por uma espécie de cupim que adorou a araucária paranaense trazida para a construção. Foi necessária uma intervenção radical para matar a bicharada.

Hoje está inteiro, mas com outras madeiras, provavelmente menos saborosas, como angelim, jatobá, cedro e castanheira. Também foram recuperadas igrejas pioneiras como a Nossa senhora do Rosário de Pompéia, da Vila Planalto, que pegou fogo – há quem acredite que foi incendiada por um padre para forçar uma reconstrução.

Grupo Escolar JULIA KUBITSCHEK

A nova luta é para reerguer a escola Julia Kubitschek, assim batizada em homenagem à mãe do presidente JK, professora. Na verdade, a escola existe, mas hoje é uma construção moderna que está no mesmo local do projeto original, na Candangolândia.

O objetivo dos amigos que lutam para preservar a memória da cidade é reconstruir o prédio, de madeira mesmo e preservando todas as características, para abrigar um museu da educação, que contaria a história das inovações que acompanharam a criação de Brasília, desde Anísio Teixeira até Darcy Ribeiro.

O projeto da escola também é de Oscar Niemeyer e foi inteiramente recuperado graças a diligência de Jarbas da Silva Marques, um mineiro-goiano que conheceu o chão brasiliense muito antes da construção da capital virar realidade – criança, ele viajava na boleia do caminhão do pai, que cruzava o sertão entre a Bahia e Goiás, levando e trazendo mercadorias.

Marques não gostou de ver o projeto sendo esnobado por secretários de educação e, na direção do Instituto Histórico e Geográfico, arrumou um lugarzinho de honra para os desenhos, à espera de um momento melhor para trabalhar pela reconstrução. O momento não chegou – nenhum governo se interessa pelo projeto –, mas ele decidiu fazer a hora.

Com a transformação do etéreo Clube dos Pioneiros numa associação capaz de levar projetos como este à frente, os trabalhos começam a andar e já existe até uma maquete em 3D. A arquitetura é similar à do Catetinho e originalmente também era de tábuas da araucária trazida do Paraná; foi um modelo, ao oferecer educação em tempo integral, com aulas de iniciação artística e ensino prático para completar o turno extra.

Com JK, a escola foi erguida em 20 dias. Agora vai demorar mais.

Publicado no Correio Braziliense em 13 de maio de 2018