Em outros tempos bicudos a música nos salvou. Compositores interpretavam a frustração das pessoas, transformada em canções que, de alguma forma, serviam de consolo ou mesmo desabafo. A repressão combatia por meio da censura oficial, mas havia alguma resistência, o que bastava para aplacar a angústia coletiva.
Nos tempos do Estado Novo de Vargas, o samba era um inimigo tão considerado quanto os comunistas. O jornalista Álvaro Salgado chegou a escrever na notória revista Cultura Política, que o samba era “indecente, desarmônico e arrítmico, sendo necessário trabalhar para torná-lo mais educado e social”.
E foi Radamés Gnatalli, para a felicidade da elite, o responsável por dar ao samba a dignidade de uma orquestra, relegando os instrumentos de couro originais a um papel secundário – embora o arranjador tenha preservado uma cozinha bem brasileira, incluindo o prato batucado por Heitor dos Prazeres.
Como a malandragem e o samba viviam de mãos dadas, o governo combatia o elogio ao ócio. O caso mais notório teria sido a mudança da letra do samba de Ataulfo Alves e Geraldo Pereira, que dizia “o bonde São Januário/ Leva mais um sócio otário/ Só eu não vou trabalhar”.
A lenda diz que, pressionados, os compositores foram convencidos a mudar a letra: “o bonde São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar”. Mas não deve ter sido assim, afinal o samba já começa com um elogio ao batente: “Quem trabalha é que tem razão”.
A censura voltou forte no final dos anos 60 e teve muito trabalho. Foi o auge das músicas de protesto no Brasil. Pra não Dizer que não falei das Flores, de Vandré, Apesar de Você, de Chico Buarque, Comportamento Geral, de Gonzaguinha, são algumas das canções que fizeram o contraponto à dureza do momento, alivio pela limitação das liberdades individuais.
Hoje o que temos? Anita e MC Rebecca cantam “tô preocupada com a minha amiga/ Ela tá descontrolada/Não pode ver o gostoso/ Que ela fica tarada”; Israel e Rodolfo vão de “enquanto o som do paredão toca/ Cê gasta seu batom de cereja/ Eu bebo, cê beija, eu bebo, cê beija”; Simone e Simaria confessam “nunca prestei/ e nem vou prestar/ coração que nasce torto/ nunca vai se apaixonar”. E depois reclamam que as pessoas não entendem quando se diz que não pode ter aglomeração.
A propósito de música de protesto, já está disponível em alguns canais de streaming o filme Os Estados Unidos contra Billie Holiday, de Lee Daniels. É uma história que gira em torno da obsessão da cantora com a música Strange Fruit, um retrato cruel do racismo no sul dos Estados Unidos, que culmina com frutos estranhos perdurados por uma corda em árvores que têm “sangue nas folhas, sangue na raiz”.
O filme conta a perseguição que o FBI dedicou a ela, infernizando ainda mais a atormentada vida de uma das maiores vozes da música norte-americana, com desempenhos marcantes de Andra Day (Billie Holiday) e de Trevant Rhoades, como o agente Jimmy Fletcher. É um filme profundamente triste, mas fundamental.
Publicado no Correio Braziliense em 28 de março de 2021