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Bichos soltos na cidade

Publicado em Crônica

Essa história de cidade-parque que Lucio Costa criou, com imensos gramados, arvoredos e espaços largos, é o que forma a verdadeira identidade de Brasília. Mais que prédios monumentais, praças de piso concretado e simbologia da arquitetura.

A empatia do morador de Brasília com a cidade tem mais a ver com os pés no chão e a relação já atávica com as imensidões, do que com a mesura dos palácios.

Aqui, a natureza surpreende. Quem vê fotos e filmes da época da construção jamais imaginaria a força de plantas alienígenas no meio do cerrado inóspito, numa época em que não havia as mágicas da Embrapa.

Bastou o lago artificial encher para que o clima fosse modificado e árvores de outras regiões remodelassem a paisagem. As árvores tortas e secas deram lugar a frondosas mangueiras, pés de jamelão (ambas originárias da Índia e aclimatadas no litoral brasileiro) e ipês (também litorâneas).

Com frutas e flores, vieram passarinhos; atrás deles vieram gaviões e urubus. O bicho homem trouxe ratazanas e baratas. E mais urubus. Esta é a parte mais complicada de ter a natureza tão perto de casa: bichos nem sempre bem-vindos, embora atraídos por seres humanos.

Hoje temos saruês enxeridos habitando telhados de mansões, capivaras curiosas abordando remadores, macaquinhos andando pelos fios dos postes e frequentando pomares, quero-queros fazendo morada nos gramados e corujas buraqueiras girando o pescoço, pousadas nas cercas das casas. Alguns são simpáticos, outros podem ser mais violentos quando se sentem ameaçados.

E há alguns que ninguém quer ter por perto. Quem acompanha estas mal datilografadas linhas, sabe que tenho um amigo que vive às turras com um casal de urubus. Morador de um apartamento de cobertura, recebe diariamente a visita do casal de abutres, que faz pouso e até ninho no local.

Incomodariam menos se não fizessem as necessidades fisiológicas no local, embora o aspecto lúgubre não agrade a vista de ninguém. Ocorre que xixi e cocô de urubu é pior que ácidos muriático e sulfúrico, misturados. Corrói tudo. E fede.

E meu amigo já buscou todas as alternativas para que o casal voasse para longe, sem sucesso. Comprou um produto que promete espantar aves, melecou toda a mão para passar no parapeito e… nada.

Antes, já havia comprado um aparelho sonoro que prometia espantar pássaros, instalou um espantalho pós-moderno e até soltou rojões na direção dos bichos, mas eles nem ligaram. Dias desses foi a uma loja de ferragens, dessas que vendem de quase tudo. Queria uma ratoeira e o balconista perguntou o tamanho do rato.

Ele ficou sem jeito de dizer que é para tentar pegar urubu e pediu a maior de todas; levou quatro. Tem 15 dias que os urubus estão comendo carne e queijo. Pelo jeito, urubu é mais vivo que rato.

A nova sugestão que ele recebeu é comprar um aparelho de som e deixar tocando o velho samba-enredo da Beija-Flor dos tempos de Joãozinho Trinta: “Sai do lixo a nobreza/ Euforia que consome/ Se ficar o rato pega/ Se cair urubu come”.

Publicado no Correio Braziliense, em 20 de junho de 2021