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No reino dos animais

Publicado em Crônica

Quem comprou um cachorrinho de raça, vira-latas ou um gatinho desses sem pelos, bem feinhos por sinal, deve saber que o fato de ter tirado dinheiro da carteira para levar o bichinho para casa – e mesmo que tenha sido caro –, não dá o direito de propriedade. Ninguém mais é dono de bicho; a partir de agora é um tutor.

Por quê?, você pode perguntar. A resposta mais precisa é: porque tem sempre gente à toa, sem ter o que fazer, mas criativa o suficiente para dizer que os ex-donos exercem uma relação de amparo, proteção, e que bicho não é coisa, portanto, não pode ter dono. Mas a gente pode ficar pensando se isso vale para todo tipo de animal.

O gaiato pode especular se os inefáveis irmãos Joesley & Wesley também são tutores dos bois que retalham e distribuem pelo mundo. E quem tem aquário, como fica? Não deve ser fácil tutorar um tetra neon ou um cascudinho limpa-vidro. Peixe é um bicho que fica abrindo e fechando a boca e não aprende muita coisa além de comer.

Mas tem mais coisa que não encaixa nessa história: pergunte ao dono… desculpe, tutor de um gato quem é que manda de verdade. Quem fica vendo esses vídeos fofinhos na internet pode até achar que o bichano está sempre disposto a brincar, que é obediente a qualquer estímulo ou que aprende alguma coisa que não quer. Nenhuma chance.

Cachorro é mais dócil e puxa-saco. Aceita ser tutorado para não sair fazendo xixi em todo vaso, roendo móvel ou atacando a esmo.

Tutor é um sujeito que dá exemplo, orienta, ensina. Romanos chegaram ao ponto de ter escravos pedagogos, mestres das crianças, mas foi no período feudal (século XI) é que a plutocracia incorporou de vez a ideia da educação privilegiada.

Os filhos da nobreza ou das famílias mais abastadas costumavam contratar tutores que ajudavam a moldar o caráter dos herdeiros a partir de conceitos humanistas ou explorando os talentos inatos. Bastardos de talento também foram beneficiados por esse tipo de mentoria. É o caso de Leonardo da Vinci, que aprendeu tanto com Verocchio, um dos artistas mais influentes da Renascença, que ofuscou o mestre.

Alguns tutores ficaram famosos. O estoico filósofo Sêneca (foto), por exemplo, passou a vida divagando sobre a renúncia dos bens materiais como base para a tranquilidade da alma. Buscava o sentimento de nobreza do espírito humano, mas na prática não se deu bem: foi tutor de Nero, o mais sanguinário dos imperadores romanos, que o condenou a morte, obrigando-o a cortar os próprios pulsos.

Não ficou para a história o nome do tutor de Maquiavel, mas o filósofo certamente foi além do que aprendeu com os humanistas para ensinar que política se faz com medo e maldade. Tanto que por muitos anos seu nome virou sinônimo de capeta para os ingleses – Old Nick (de Nicolau).

Que sirva de exemplo. Não adianta o pitbull ter tutor e não usar focinheira. Ainda mais que a gente sabe que tem muito bicho que deveria tutorar o dono.

Publicado no Correio Braziliense em 13 de junho de 2021