Morrissey

Memórias e afetos do mundo musical

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O jornalista Olímpio Cruz Neto transformou algumas de suas canções preferidas nos textos que compõem o seu primeiro livro: Playlist — crônicas sentimentais de canções inesquecíveis, disponível na plataforma digital Amazon. O autor enviou um dos capítulos para o blog. Confira a seguir a crônica sobre um dos maiores clássicos da banda inglesa dos anos 1980 The Smiths. Leia mais sobre o livro no Diversão & Arte .

 

There is a light that never goes out

Para Beto Só, Oscar Ju e Cynthia Garda

De todas as belas canções da banda inglesa Smiths, uma das mais importantes da cena britânica dos anos 80, essa é a que mais mexe com o meu imaginário. Não é que a melodia seja inusual. Nada disso. “There is a light that never goes out” é, na verdade, tipicamente “marriana”. A canção é da dupla James Patrick Morrissey e Johnny Marr, o Lennon e McCartney da minha geração. Dois caras brilhantes. Volta e meia, essa obra volta a chamar atenção, sendo incluída na lista das grandes e melhores de todos os tempos. Composta em 1985 pela dupla, no auge de sua criatividade, a faixa é considerada por todo fã dos Smiths como divina.

Ela tem mesmo uma graciosidade excepcional que provoca um contraste forte com a letra de cores mórbidas, uma das características de Morrissey. A melodia é intensa e ganha contornos de tragédia, graças a essa combinação e ao arranjo de cordas que causa um clímax arrepiante. A canção pop perfeita. Épica, intensa e esplendorosamente simples.

A música integra o disco The Queen is Dead, o penúltimo trabalho dos Smiths, lançado em 1986. O álbum é considerado o melhor do grupo. E deve ser mesmo. Como sou fã e gosto de todos, fica difícil dar uma opinião. O certo é que foi o LP que lançou os Smiths à estratosfera e deu início ao fim da banda. O grupo acabaria no ano seguinte.

O interessante é que, apesar de muito conhecida, “There is a light…” jamais foi lançada como single pelo grupo, enquanto estava no auge. Um erro absurdo dos caras. A sugestão chegou a ser dada, mas reza a lenda que Marr não se convenceu…

Em uma entrevista à revista inglesa Uncut, o guitarrista disse que a canção não foi lançada em single exatamente para dar uma aura de grande álbum a Queen is Dead, assim como How Soon is Now também jamais saiu em single e está no álbum Meat is muder, lançado em 1985.

Eu sempre fui muito ligado a essas duas canções, muito pelo trabalho de guitarras e violões, esse amálgama de trançados que é a marca registrada de Johnny Marr. Texturas e floreios requintados.

O guitarrista confessou em uma entrevista à revista Select que roubou os acordes da introdução de uma cover que os Rolling Stones fizeram para a canção Hitch Hike, de Marvin Gaye, William Stevenson e Clarence Paul, presente no terceiro álbum da banda inglesa, Out of our heads, lançado em agosto de 1965. Os Stones também surrupiaram de muita gente, então… Não tem problema.

Essa mesma introdução também já havia sido roubada dessa mesma versão dos Stones pelo Velvet Underground, que executou o crime em There she goes again, faixa que está no disco da banana, lançado pelo grupo em 1967. Então Marr “roubou” dos Stones, sabia que o Velvet havia “roubado” dos Stones, mas acreditava que alguém na imprensa musical inglesa iria denunciar o caso, para apontar que o guitarrista dos Smiths havia surrupiado uma intro do Velvet. Bem, ninguém percebeu. Ele se disse surpreso com o pouco caso.

Outra surpresa, dessa vez para mim pelo menos, é que o conjunto de cordas usado por Marr nesta canção, que eu imaginava tratar-se de uma orquestra de verdade, foi feita a partir de um sintetizador. Reza a lenda que Morrissey estava apavorado com a possibilidade da canção vir a soar artificial. A banda não tinha dinheiro para contratar músicos de verdade. Optou-se pela saída econômica, com o sintetizador sendo tocado por Marr.

Os temores do vocalista eram infundados. O grupo acertou a mão. Marr diz que todos ficaram imediatamente satisfeitos quando ouviram o primeiro registro depois de terem tocado nas sessões de gravação.

A música é sublime já de início com as guitarras de Marr soando abertas, quando ele ataca a introdução em Ré menor, o baixo sinuoso de Andy Rourke vai marcando com firmeza a melodia para que Morrissey possa cantar, como um apelo, os primeiros versos:

“Take me out tonight/ Where there’s music and there’s people/ Who are young and alive/ Driving in your car/ I never never want to go home/ Because I haven’t got one anymore”.

Em português:

Leve-me para sair esta noite/ Para onde haja música e pessoas/ Que sejam jovens e vivas/ Dirigindo no seu carro/ Eu nunca, nunca quero ir pra casa/ Porque eu não tenho mais casa”…

A voz que entoa a canção, desesperada, clama por atenção. Só quer um convite para sair de casa e se divertir… Aos 15, 16 anos, em plenos anos 80, era tudo que uma pessoa poderia pedir. A vontade de sair por aí, sem eira nem beira, viver para ver a vida correr… Vivendo intensamente, mesmo que seja para morrer imediatamente.

O cantor sabe, e nós também intuímos ao ouvi-lo, que há riscos nisso. Mas, mesmo sabendo desses riscos, declamados nos versos contidos no refrão, realmente arrebatador, vale viver o amor. Diz a letra no bridge:

“And if a double-decker bus/ Crashes into us/ To die by your side/ Is such a heavenly way to die/ And if a ten-ton truck/ Kills the both of us/ To die by your side/ Well, the pleasure, the privilege is mine…”

Vejam como soa na primeira língua de Renato Russo, em tradução livre:

“E se um ônibus de dois andares/ Batesse contra nós/ Morrer ao seu lado/ Seria um jeito divino de fenecer/ E se um caminhão de dez toneladas/ Matasse a nós dois/ Morrer ao seu lado/ Bem, o prazer, o privilégio é meu”.

Isso é embaraçoso, mas também absolutamente sensacional porque Morrissey, um dos mais brilhantes letristas do rock inglês, acende a chama irrefreável de uma paixão adolescente, com os requintes da ansiedade que domina o amor juvenil. Ele estava anos luz à frente dos letristas ingleses de sua geração. Esta canção está nas melhores músicas de todos os tempos.

O jornalista Simon Goddard conta que a canção foi inspirada no filme Juventude Transviada, estrelado por James Dean, uma obra-prima dirigida por Nicholas Ray, lançada em 1955, que conta a história de Jim Stark, papel vivido por Dean, jovem problemático. Certo dia, Stark é preso por embriaguez e, ao chegar à delegacia, conhece Judy (Natalie Wood). Eles se apaixonam, ela tem um namorado, os rapazes entram em conflito aberto… Era para ser um filme sobre de retrato da decadência juvenil americana, mas se tornou um libelo da rebeldia.

Dean alcançaria a imortalidade porque este foi o seu último papel em vida. O filme foi lançado um mês depois da morte do ator, de quem Morrissey era fã absoluto. O cantor voltaria a gravar esta canção desta vez como single, em sua carreira solo, em 2005.

Johnny Marr disse certa vez que tinha muito orgulho de tê-la criado e que a considera sua melhor canção e também a favorita. O rapaz tinha 22 anos quando cometeu essa canção ao lado do parceiro Morrissey. É de fato uma obra-prima e a crítica a considera a que melhor define o som dos Smiths.

O cantor venezuelano Mikel Erentxun, ex-vocalista do grupo de rock espanhol Duncan Dhu, gravou em 1992 uma versão na língua de Cervantes, em seu disco solo de estreia, Naufrágios, de 1992, que obviamente não ficou à altura da obra de Morrissey e Marr, porque a letra se perde um pouco na versão em castelhano. O refrão ficou assim:

“Y si estoy sólo esta vez, no es casualidad/ morir por ti sería un lento y bello final/ y no regresarás a mi corazón/ morir por ti sería un ambicioso final…”

É preciso reconhecer que a canção não soa tão bonita em espanhol como é na língua de Shakespeare, mas o apelo original na intenção de Morrissey de tirar a vida para encontrar a felicidade em outro plano certamente explicita o suicídio que a canção sugere. Aliás, por causa disso, a musica chegou a ser classificada como mórbida, exatamente por essa certa glamourização do ato final.