O calendário do Athos 2

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Eu disse a um amigo que, a esta altura do novo ano, sentia falta do calendário do Athos Bulcão, produzido pela fundação que leva seu nome. O colega argumentou: “mas, você tem tudo no celular.” Não me convenceu. Confesso que me sinto totalmente perdido no tempo e no espaço sem o calendário do Athos. É lá que marco os compromissos importantes, as consultas médicas e as datas de aniversário de pessoas queridas. Então, fui até a Fundação Athos Bulcão, na W3 510 Sul, para comprar o calendário.

Neste ano, o calendário contempla os desenhos do artista. Certa vez, uma repórter desavisada pergunto a Athos Bulcão o que ele havia feito na Semana de Arte Moderna de 1922 e ele respondeu: “Fiz 4 anos”. Athos pertencia à raça dos tímidos incuráveis, falava em tom quase sussurrado, mas tinha um senso de humor impagável.

Embora não tenha participado da Semana de 1922, era um artista moderno da cabeça até os sapatos. Como todo grande inventor modernista, o suporte para as suas criações era apenas um detalhe ou uma circunstância. Onde tocou, ele deixou a marca do talento: intervenções na arquitetura, pinturas, esculturas, fotomontagens, máscaras, painéis, paredes, treliças, divisórias, tetos portas e desenhos.

Um fato que Athos considerava mais relevantes da infância no Rio de Janeiro era o de ter morado perto de Vila Isabel. Noel Rosa, o grande sambista da Vila, era amigo do irmão de Athos. Todos os anos havia batalha de confetes nas ruas Maxwell, Pereira Nunes e dos Artistas. Em uma folia, chegou a ser colocado dentro de um carro, com a capota arriada, onde desfilavam Noel Rosa e Francisco Alves.

O umbigo da odalisca causava furor na cidade. Todos queriam ver: era o máximo de imoralidade. Athos evocou esse clima carnavalesco de Vila Isabel em uma série de desenhos. Entretanto, parece-me que, mais do que uma reminiscência da infância, o envolvimento com o carnaval marcou a visão estética de Athos.

Nem todos os desenhos do calendário deste ano são do carnaval. Mesmo assim, parecem ter inspirado Athos na vibração de alegria das cores ou na composição de figuras alegóricas. Esse é o segmento mais espontâneo da produção do Athos. O inconsciente jorra do bico de pena, das canetas bics ou das guaches em uma fantasia de traços, tramas e cores.

É extremamente oportuna a criação do Museu da Democracia pelo governo Lula. Trata-se de uma iniciativa fundamental para que aquele 8 de janeiro, dia da infâmia golpista, não se repita. Mas, ao mesmo tempo, seria muito importante que o governo federal apoiasse a construção da sede definitiva da Fundação Athos Bulcão, que já tem projeto arquitetônico de Lelé Filgueiras.

Com certeza, complementaria o conjunto de edifícios modernistas de Brasília e se tornaria um dos pontos turísticos mais frequentados da capital do país. O GDF só faltou pedir ao Athos que se inscrevesse no programa Minha Casa, Minha Vida.

Se o governo federal assumisse o projeto da criação da sede definitiva da Fundação Athos Bulcão, que belo contraponto faria ao descaso do governo local com o legado do mais importante artista da cidade e de uma das maiores referências da arte-arquitetura em termos internacionais. Seria uma declaração de amor à arte, ao Athos, a Brasília e ao Brasil.

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