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Um milhão de amigos

Publicado em Crônica

O inverno ainda nem chegou, apesar do friozinho das noites, mas é como se já estivéssemos vivendo uma primavera. Os primeiros vacinados estão aos poucos se libertando do cativeiro que o vírus impôs e, pisando de mansinho, com pernas bambas de bebê, retomam algumas atividades que ficaram suspensas por mais de ano.

Há quem exagere, entre em muvuca de bar, em promoção de shopping ou na roleta russa dos espaços fechados apinhados de gente. Mas há os responsáveis, que não precisam de tutela de governantes para saber como se comportar diante de uma tragédia global que já provocou tanta tristeza. Esses estão sendo reconduzidos à vida.

É uma sensação de alumbramento, me disse um amigo que, depois de receber a primeira dose, se considerou apto a passear pelo canteiro central da pista da península do Lago Norte. Sozinho. O único risco ali, ainda mais nessa época do ano, são as valentes famílias de quero-quero, porque há ninhos cheios de ovos, espalhados pelos buracos do gramado.

“O mundo está tão bonito”, disse ele, naturalmente exagerando, porque o planeta não se limita àquele espaço percorrido. Mas essa era a sensação que experimentava, embora more numa casa confortável, com amplo quintal – só se lamentou de um dia ter cortado a maioria das árvores e ter ladrilhado o que era grama.

É um momento de reencontros. Amigos de velha data ainda não se abraçam como gostariam e nem dividem o mesmo copo, mas já se aproximam. Alguns retomam os velhos hábitos nos botecos, em cadeiras distanciadas, outros vão mais mansamente e de modo mais seguro. É o caso da Turma do Gambá, grupo de músicos amadores que se reúne há quase três décadas, sempre nas noites de quarta-feira.

É uma roda musical das mais animadas, que recebe convidados de braços abertos, apenas para celebrar a música brasileira, cantada em uníssono e na maior harmonia. No repertório cabe um pouco de tudo, mas sempre se abre um espaço para lembrar as efemérides da semana, trazendo a obra de compositores aniversariantes.

Para quebrar o gelo pandêmico, a turma fez uma roda de solistas e via WhatsApp, quando cada um escolhe algumas canções e envia para os demais, entre aplausos e elogios virtuais. Mesmo com boa parte dos gambás já vacinada, ainda não é prudente voltar para a galeteria que virou ponto de encontro da rapaziada antes do mundo se guardar.

Mas já dá para quebrar alguns protocolos. Esta semana quatro membros da turma se juntaram, ao ar livre, na casa de um deles e com cuidado, para fazer uma homenagem a todos os demais. Marcus Vinicius, Paulo Benite, Kepler e Dager (o único ainda não vacinado e que ficou isolado na mesa) cantaram Eu Quero Apenas, de Roberto e Erasmo, numa levada samba-rock.

Mais algumas doses, certamente o pessoal vai voltar a se juntar e a celebrar, como todos nós faremos. Podem não ser um milhão de amigos, mas é como se fossem. Afinal, se parece primavera, estão chegando as flores. E aí é preciso cantar.

Ouça o quarteto do gambá:

https://studio.youtube.com/video/oOe8H4qWcEQ/edit

Publicado no Correio Braziliense em 16 de maio de 2021