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A bola achatada

Publicado em Crônica

A pandemia vem transformando o mundo num lugar inteiramente falso, quase sem sentido. Não há nenhum amargor na frase; é só uma constatação, feita a partir da situação mais besta do mundo: um jogo de futebol.

A mais ordinária pelada, quando transmitida pelo rádio, é um épico, um espetáculo aberto por cortinas de feltro, emoções à flor da pele. O bom narrador transforma a firula tosca num espetáculo, o jogador chambão vira gênio; a jogada banal ganha tintas gloriosas.

O Brasil tem uma tradição de grandes narradores que transformam as chamadas – por eles – quatro linhas, em um campo de luta com as mais mirabolantes estratégias militares. A pelada vira um drama digno da batalha de Azincourt, na peça Henrique V, de Shakespeare.

Ouvir um jogo pelo rádio era uma experiência transcendental até pouco tempo, mas a objetividade de nossos dias vem nos tirando mais este prazer.

Tudo começou com o fim do mistério por trás da voz. O rádio começou a transmitir programas com imagens, acabando com a magia de se imaginar a cara dos narradores durante a lida.

Hoje é possível ver a atuação de locutores, comentaristas e repórteres em cabine, num enquadramento estranho e invertido: ao invés de mostrar a partida e, naturalmente, os jogadores atrás da pelota, exibe a cara – normalmente muito feia – dos narradores.

Os radialistas elevaram o futebol a uma categoria especial de crônica falada, em que a verdade importa, mas bem menos que a versão. Hoje eles são objetivos, gelados, insistindo em explorar apenas o fato, sem espaço para a criação. Quem perde é o torcedor que, presente no estádio, mantinha o radinho de pilha na orelha para ouvir um jogo mais emocionante do que o que estava vendo.

Houve tempo em que os torcedores eram personagens tão populares quanto dirigentes. Gente como o brutamontes Tarzan, do Botafogo, o apaixonado Ary Barroso, do Flamengo, o supersticioso Fontainha, do América, o influente Galotti (ministro de Vargas), do Fluminense, ou a fanática Dulce Rosalina, do Vasco.

Todos esses, e mais alguns, foram imortalizados no livro Torcedores de Ontem e de Hoje, de João Antero de Carvalho, lançado em 1968, e que ganhei de Renato Vivacqua. São perfis de pessoas que vivem pelo time, “humanos no horror do sacrifício diário e contínuo pelos seus clubes, o sofrimento, a angústia, a alegria, a inenarrável alegria de uma vitória”, conforme atestou Nelson Rodrigues na orelha do livro.

Alguns torciam com uma flautinha (Ary), outros usavam um sino (Bolinha), outros um foguetório infernal (Tarzan), num tempo de paixões exacerbadas. Talvez o mais folclórico deles tenha sido o botafoguense, que alternava sua presença entre as páginas esportivas e policiais e ganhou reconhecimento até dos clubes adversários.

Mesmo em Brasília, sem tanta tradição esportiva, houve torcedores tão reconhecidos quanto craques, como o falecido palhaço Pirulito, do Gama.

Mas a última novidade é pior: com estádios vazios, as emissoras transmitem um fundo falso, uma torcida fake gravada sabe-se lá quando, incluindo ‘uuuhs’ e ‘aaaahs’ quando a bola passa perto e vaias quando um jogador erra. Tudo no estilo desses jogos de computador. Bola rolando sem gente de verdade gritando é o retrato desse mundo chato.

(Na foto, Ary Barroso transmitindo um jogo do Flamengo do telhado de uma casa vizinha ao campo)

Publicado no Correio Braziliense em 9 de maio de 2021