Toda noite quando chegava em casa ele era recebido pelo papagaio, aos brados:
– Chegou o cachaceiro! Pinguço!
Se sentia um personagem de piada; e reclamava da hoje ex-mulher para os companheiros, que havia ensinado o pássaro a repetir sempre as mesmas frases, inclusive com o tom exclamativo, quando ele chegava à noite. O pior é que o papagaio estava certo; nosso amigo estava bebendo demais, a ponto de a dona do boteco tomar-lhe as chaves do carro.
Conselhos dos amigos, todos apreciadores de umas doses – com moderação – de nada adiantavam. Ele não tinha nenhum problema que precisasse ser embebido em gim, nada para afogar e que alterasse a vida de aposentado com salário integral da função que ocupou no banco. Nem os filhos davam trabalho. Bebia porque gostava. Mas gostava muito.
A única irritação era o papagaio, sentimento que foi-se tornando incontrolável, até virar um ódio obsessivo – o bicho passou a ser considerado um inimigo. Ele tentava pequenas vinganças, cometidas antes de sair de casa, quando esvaziava a tigela de sementes de girassol e secava o recipiente da água.
Ainda assim, a voz esganiçada do papagaio o perseguia e ele lembrava da ave com olhos rútilos e esbugalhados e penas eriçadas:
– Chegou o cachaceiro! Pinguço!
Os amigos faziam troça: “O papagaio é protegido por lei, igual índio. E fala. Vai voar até o Ibama e te denunciar”. Não gostava das brincadeiras; para ele era assunto sério. Mas não denunciava porque afinal a megera era a mãe dos filhos. E além de tudo fazia a comida dele, que confessava medo de ser envenenado.
Já não conversava mais. Parou de comentar as notícias do telejornal e deixou de olhar até para o futebol. Só reagia às piadas de papagaio, cada vez mais frequentes, como a do sujeito que trazia um papagaio no ombro, quando foi perguntado: “O animal fala?”. Quem respondeu foi o papagaio: “Fala. E eu também!”. Não ria e ainda reclamava.
Alguém lembrou a história do papagaio que xingava o dono todo dia; como vingança, foi jogado no freezer por alguns minutos e, quando libertado, assustado, pediu perdão pelo linguajar, dizendo que nunca mais iria xingar. Antes mesmo de ocupar o lugar no poleiro, perguntou:
– Só por curiosidade, me diga: o que foi que o frango fez? – e ele ficava sério.
O casamento fez água. Mais de 30 anos de convivência chegaram ao fim; a mulher alegou que não aguentava a bebedeira. Ele ainda tentou dar um jeito na situação, mesmo porque não queria sair de perto dos companheiros. Não estava preparado para deixar a casa próxima ao boteco que fiava e onde tinha carona.
A mulher não apenas estava irredutível como endurecia na partilha dos bens. Já passado dos 70, ele não se perturbava com o drama: “Já encomendei um caixão sem gavetas para não levar nada para o andar de baixo”, dizia. Não queria nada, mas recomendou ao advogado, nosso colega de mesa. “Só não abro mão de ficar com o papagaio”.
Ninguém entendeu nada.
Publicado no Correio Braziliense de 22 de junho de 2018