Priscas eras, provavelmente no tempo da impressão a chumbo quente, me recusei a publicar aqui, neste mesmo Correio, um artigo em que o autor – vamos mantê-lo no anonimato – defendia pichações como manifestação artística. Como hoje, havia rabiscos por toda a cidade, garabulhas apressadas pelo medo da polícia chegar – tudo propositalmente feio, segundo o autor do artigo, para nos tirar do conforto visual.
Não sou conhecedor de artes plásticas; ao contrário, tenho dificuldade em apreciar obras-primas consagradas e relacionar arte com feiúra. Reconheço valor em Basquiat (embora o quadro do sujeito puxando a vaquinha me incomode muito; precisa muita teoria para explicar), já Richter e os abstratos contemporâneos são muito para as minhas limitadas noções estéticas.
Mas pichação só é possível ser vista como manifestação do espírito de porco que fica escondidinho dentro de cada um de nós. Todo mundo – ou quase – tem vontade de cometer uma transgressãozinha, faz parte da vida; a inconsequência aparece até entre os mais circunspectos, ainda que as vezes se manifeste só por palavras.
O Mister Hyde aparece durante um jogo de futebol, no trânsito ou no carnaval, quando o sujeito tira o anel de doutor para não dar o que falar e ao invés de tomar chá com torradas, bebe parati. A educação serve exatamente para frear esses ímpetos, ou pelo menos impedir que pareçam bestiais.
O pichador é isso: um sujeito incapaz de se destacar por algum mérito e que avacalha o que tem pela frente. Antes carregavam baldes de piche; hoje usam uma latinha inventada por Edward Seymor, certamente com a melhor das intenções, e que, por lei, tem venda limitada. É diferente do grafiteiro e do poeta de paredes, que cola cartazes com versos impressos e até ajuda a dar humanidade ao concreto.
Agora temos o pichador reivindicador; ele suja, enfeia, mas tem algo a dizer. Depois de terminadas as reformas nas tesourinhas do Eixão para evitar que os viadutos caiam sob nossas cabeças – e isso não é apenas uma forma de dizer – as novas paredes cinzentas amanheceram com uma inscrição, com letra caprichada: “Cadê os tijolinhos?” Embaixo, o desenho de uma florzinha…
Não cabe discussão para saber o que tijolo tem a ver com flor. Mas o protesto merece alguma atenção: na reforma, foi retirado o acabamento de tijolinho de cerâmica marrom das paredes, agora cinzas, da cor do cimento. Os tijolinhos não eram tombados e os novos projetos foram simplificados.
Sem entrar no mérito da relevância, faz parte da cultura da cidade debater esses temas. Aliás, Brasília desperta umas paixões esquisitas nos moradores, natos ou importados. Aqui, briga-se até para preservar barracão que deveria ter sido derrubado logo depois da construção, como acontece no planeta inteiro, e para preservar manadas de capivaras pulguentas que invadiram um lago artificial.
Assim, não surpreende que alguém se incomode com a ausência daqueles tijolinhos, que aliás eram tão feios quanto a parede cinzenta que está lá e que foi pichada. Se há alguma evolução, é que a caligrafia é bem melhor que as garatujas pretas e borradas.
Publicado no Correio Braziliense em 7 de fevereiro de 2021