2020. Crédito: Arquivo Pessoal. Cultura. Fernando Lopes e Glória Maria. 2020. Crédito: Arquivo Pessoal. Cultura. Fernando Lopes e Glória Maria.

A folia ficou no passado

Publicado em Crônica

Este ano não vai igual aquele que passou. Aliás, a nenhum outro. Desde que os colonos brasileiros incorporaram o entrudo português (uma saudável brincadeira em que as pessoas saiam sujando umas às outras com lama, urina e até excreções mais sólidas) o povo sai às ruas fantasiado de Antonieta ou com a camisa social amarrada na altura do umbigo.

São mais de cem anos de folia a serem interrompidos pelo vírus, embora se dê como certa a desobediência, outra tradição carnavalesca e que vem desde 1841, quando os entrudos foram proibidos, mas continuaram assim mesmo. Quem consegue parar os blocos de sujo?

Em Brasília, a festa acompanhou o nascimento da cidade, mesmo com a escassez feminina dos anos de poeira vermelha, em bailes realizados nos improvisados salões de madeira da Cidade Livre. Cresceu e formou seus artistas – compositores, músicos e cantores – que faziam uma festa independente e animada.

Nos primeiros tempos musicais, a folia era praticamente dividida entre Fernando Lopes e José Lourenço, cantores que ocupavam praticamente todos os espaços, e que até inventaram uma rivalidade, que só existiu para os ouvintes.

Amigos, andavam no mesmo automóvel quando caitituavam seus lançamentos nas emissoras de rádio da cidade, onde eram recebidos pelos comunicadores da época, como Galen Balfaker, da extinta Rádio Alvorada. No ar, se criticavam e se provocavam. E voltavam juntos, rindo da traquinagem.

O filho de José Lourenço, hoje advogado Roberto de Sant’Ana, só se lembra da parte da amizade que unia os dois primeiros ídolos musicais de Brasília. E escreveu:

“Meu pai já residia na cidade antes, bem antes de sua inauguração. Apaixonado desde sempre pelos festejos Momescos, pôs-se a trabalhar, convocando músicos “de fora”- que, via de regra, hospedavam-se em nosso apartamento.

Teve como incansável parceiro na não pouca complexa saga o singular cancionista  também pioneiro Fernando Lopes, amigo de todas as horas.

Para resumo da história, o primeiro carnaval da Brasília foi, a despeito das inúmeras dificuldades enfrentadas, de pleno sucesso.

Dividiram as primeiras posições no concurso realizado para marchas e sambas carnavalescos, os dois companheiros em destaque.

Fernando era íntimo de nossa casa, como seria de se esperar. Meus irmãos e eu o tratávamos carinhosamente por “Tio”, como fazemos até hoje.

Feliz proprietário de simpatia exuberante, sorriso largo e cativante, aprumo permanente no trajar, Fernando Lopes, para além de cantor consagrado, tornar-se-ia paralelamente em colunista de prestígio na capital, publicando textos saborosos e inteligentes nos jornais, muitos dos quais foram colecionados por meu pai e que hoje releio com sempre renovado prazer.

Artistas pioneiros da “capital candanga”, pois, tomaram para si – como de forma diversa não poderia ser – o sublime encargo de disseminar alegria na urbe que dava seus primeiros passos em direção a um futuro radiante. Brasília, para todo o sempre, penhoradamente há de agradecer-lhes.”

José Lourenço já morreu; Fernando Lopes continua por aqui. Recém vacinado contra a covid-19, pode ser visto e ouvido nas noites de domingo na roda musical do bar Grao, no último comércio do Lago Norte. Mas sem marchinhas; ele se dedica aos boleros.

No vídeo, a voz de Fernando Lopes cantando um de seus sucessos carnavalescos, Isso Me Ama (1961).

Publicado no Correio Braziliense em 14 de fevereiro de 2021