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Folia na capital

Publicado em Crônica

O presidente Juscelino Kubistchek tinha acabado de completar um ano no Palácio do Catete quando pipocou o primeiro protesto musical contra a transferência da capital para o meio do país. Gravada dia 30 de agosto de 1956 e lançada em novembro pela RCA Victor, a marchinha Nova Capital foi a aposta de Linda Batista para o carnaval.

Os autores, Aldaci Louro, Sebastião Mota e Edgard Cavalcanti, ainda tratavam a promessa de campanha como boato – “Dizem, é voz corrente/ Em Goiás será a nova capital”, cantam os primeiros versos. E concluem, conformados: “Leve tudo pra lá, seu presidente/ Mas deixe aqui o nosso carnaval”. Não pediu pelos barnabés.

O estribilho deixava tudo mais claro: “O carioca chora, da lágrima cair/ Se o reinado de Momo/ Também se transferir”. Não foi esse sucesso todo; a música estava esquecida, mas foi recuperada pelo livreiro Jorge Brito, que agora deu de coletar canções sobre Brasília para organizar um musical, com a inefável consultoria de Renato Vivacqua e Fátima Bueno.

Um ano depois, a mudança continuava na pauta da folia, desta vez com Joel de Almeida, que gravou a marcha Isso Não se Faz no dia 4 de dezembro de 1956, também com letra curta e incisiva. “Ah, Seu Presidente, isso não se faz/ Levar meu samba, o meu pandeiro e a mulata/ Lá pra Goiás/ Agora o que é que eu vou dizer/ Se por acaso o turista perguntar/ Onde é que está a mulata para eu dançar”.

E mais um ano se passou quando Herivelto Martins e Grande Otelo fizeram Adeus Mangueira, gravada pelo Trio de Ouro (já com Lourdes Bittencourt no lugar de Dalva de Oliveira) em 14 de novembro de 1957, lançada em janeiro do ano seguinte. Era uma despedida, da cidade e do samba: “O home tá chamando… Adeus meu samba/ Adeus, capital federal… Brasília me chamou pra trabalhar”.

Todos os que protestavam certamente não tinham ideia que a obsessão de JK se transformaria numa cidade de foliões. Já há alguns anos Brasília não depende mais de desfiles organizados, bailes em clubes e hotéis ou chancelas oficiais; a festa é na rua. A ironia é que as velhas marchinhas são reproduzidas nas ruas, ao lado de sambas, frevos e o que mais vier. Não adiantou protestar: o carnaval veio.

Falando nisso…

Quarta-feira de cinzas é dia de ressaca para uns e de contrição para outros. Início da quaresma, é período de reflexão e sacrifícios para católicos, mas é também o dia em que hepatovis, engov e genéricos batem recorde de venda nas farmácias. Pois foi numa dessas quartas, em 1941, que Mário Lago escreveu os versos de Aurora, uma das mais populares marchinhas, cantada até hoje, mostrando que a folia pode vencer a enxaqueca.

O compositor Roberto Roberti tinha uma frase e uma onomatopeia na cabeça – “se você fosse sincera, ô, ô, ô, ô, Aurora” – e um arremedo de melodia. Mário Lago fez uma letra moderna, com elevador, ar refrigerado, e nasceu um sucesso que mostra que carnaval não acaba nunca e ainda ganhou uma curiosa gravação em inglês, das Andrew Sisters.

Bom carnaval.

Publicado no Correio Braziliense em 23 de fevereiro de 2020