No capítulo anterior, o namoro foi interrompido pela presença de um pitbull, cachorro de estimação da mocinha. Nosso herói deixou o apartamento sem conseguir seu libidinoso intento, mesmo depois de tanto investimento; não tivemos notícia da reação dela.
E ficamos sem saber se houve sequência do atribulado romance do nosso amigo, artista sensível, que se encantou pela moça, até ter seus instintos mais primitivos freados pela presença ameaçadora do bicho. A história clama por uma conclusão.
Antes do anticlímax, foram dias de ensaios, insinuações, conversas e trocas de intimidades, daquelas que deixam o casal aceso. Não seria um cachorro, mesmo que tivesse cara e zelo de pai de donzela, que iria interromper a marcha dos acontecimentos… ou seria?
Nosso amigo, no entanto, é daqueles que não desistem facilmente e já no dia seguinte voltou à carga. A moça vale a pena.
E escolheu a tática de retomar a corte, mas esta vez dispensando o bailado de mestre-sala em torno da porta-bandeira. Era uma etapa vencida, já esteve dentro do apê da moça… “maldito cachorro”, trincava os dentes.
Resolveu que seria mais direto. Não tanto que demonstrasse desespero, nem tão pouco que deixasse dúvidas quanto as intenções.
Marcou um singelo café com croissant e a conversa mostrou que os dois continuavam se entendendo; interesses iguais, gostos ligeiramente distantes, mas só o suficiente para manter a conversa animada. Falaram de trabalho, de filmes, livros.
Só não falaram da aflição: como é que ela, com um metro e sessenta, mora com um cachorro daquele tamanho? E ainda mais cheio de dentes. Mas não houve brecha.
Nosso amigo não é cinófobo, definição para quem tem medo de cachorro. Mas é claro que isso não vale para um rottweiler, um pitbull, um doberman, bichos feitos para dar medo em todo mundo mesmo, por mais que a amiga chamasse o canino em questão de “um amor”.
Ele discorda. “Não existe amor de mau humor”, cunhou, tentando comparar bicho com gente. Seres humanos pessimistas ou resmelengos são normalmente punidos com problemas de saúde, especialmente derrames e ataques isquêmicos, além de diabetes e hipertensão. Bicho não: quando mais caturra, mais saudável.
Uma coisa é um chihuahua, que apesar de ser uma das raças mais irascíveis, tem um palmo de altura e não aguenta um pontapé. Ou um pinscher, que tem mais orelha do que um coelho e valentia de leão, mas também não suporta um tranco. Outra coisa é o bicho que estava na porta da casa da moça, grande, musculoso, com as pernas arqueadas de caubói e aquele olhar fulminante de vilão de histórias em quadrinhos.
A conversa corria muito bem, mas estava difícil encaixar o golpe final, aquele uppercut retórico que deixaria a moça zonza, pronta para cair nos braços do herói da fita. Mas o interesse da moça era tão grande quanto o dele; só esperava o convite, que veio. Dela. “Precisamos terminar o que começamos…”, disse. Ele mexeu na cadeira, lembrou do cachorro, e aceitou:
– Vamos lá em casa. É mais perto…
Publicado no Correio Braziliense em 27 de junho de 2021