Fico imaginando porque ninguém nunca pensou em colocar um púlpito num bar. Seria uma versão tupinambá do speakers corner, o cantinho do Hyde Park, em Londres, onde o cidadão pode subir num banquinho e deitar falação sobre qualquer coisa (na foto). As regras só não permitem o incitamento ao ódio. O resto pode.
O sol ainda estava se pondo quando o nosso amigo entrou esbaforido no boteco, sacudindo o celular e falando alto. Imaginamos que vinha de outro bar, mas não; era indignação mesmo. Ele olhava e apontava o dedo para mim, mas falava no plural: “vocês!”. Era uma clara acusação; evitei levantar as mãos como clamor de inocência.
Ficou claro que “vocês” eram os jornalistas. Como eu era o único representante da laia naquela roda, virei alvo.
Nosso amigo prosseguiu e, ventas abertas, protestava contra um artigo que leu, em que o autor pregava a volta da capital para o Rio de Janeiro. Foi uma tentativa de conversão meio envergonhada, já que o artigo defende que parte dos órgãos da República fiquem por aqui e outro pedaço vá para lá. Como se vê, ideia de jerico.
Parênteses: Essa é uma expressão muito brasileira, mas inspirada em outras plagas. Antes de Cristo, Esopo criava fábulas – aquelas dos tempos em que bichos falavam – em que o burro era apresentado como um tolo que usava pele de leão para tentar assustar os outros.
Acrescentando a característica que o animal tem de empacar vez por outra, o animal – entre nós – virou símbolo de estupidez. Menos para Luiz Gonzaga, que o cantou como nosso irmão. Prestígio maior, só nos Estados Unidos, onde é até símbolo do partido Democrata, como símbolo de trabalho duro.
Como não vamos encontrar uma solução para esta dicotomia, melhor não empacar, porque jerico também é conhecido por jegue, burrico, asno, jumento.
Nosso amigo estava revoltado porque o articulista da ideia de jerico encontrou na cidade a culpa pela crise entre poderes republicanos que estamos vivendo. “Isso não é geográfico”, dizia, dedo em riste, ainda me encarando. “Ainda mais voltar para o Rio, cidade com histórico de corrupção infinitamente maior que o de Brasília. Quem não lembra da gaiola de ouro, de tanto governador preso?”, prosseguia, agora com o apoio de todos os demais comensais, que não tinham lido o tal artigo.
Providencialmente, a balbúrdia atraiu o rapaz que nos atende; pude pedir mais uma dose. O amigo não parava de falar; sequer sentou-se. Com indignação épica, lembrou do fundador JK, falou que os jornalistas sempre foram contra a mudança da capital e que um absurdo desse nunca deveria ter sido impresso.
Fui salvo do linchamento pelo Siva, engraxate de ouvido comprido e língua ainda mais longa ainda, que cobra R$ 30,00 para fazer seu serviço porque usa tinta especial – preço caro até nesses dias de inflação a galope. E disse ele:
– Doutor, é tudo vingança.
Diante da cara estupefata e ignorante de todos, explicou:
– Brasília tomou tudo do Rio. Até o Mengão. Eles querem de volta.
Publicado no Correio Braziliense de 5 de setembro de 2021