choro

De perder a compostura

Publicado em Crônica

Borboleta ou avião, é o Eixão – no mapa, Eixo Rodoviário – que sustenta as asas do projeto de Lúcio Costa. A estrutura com seis pistas foi criada para facilitar o trânsito, evitando-se cruzamentos e distribuindo as quadras residenciais à sul e norte, uniformemente. Até que alguém descobriu que era possível fazer mais com aquele imenso vão urbano, aproveitando que aos domingos os carros rareavam.

O publicitário Haroldo Meira, então administrador do Plano Piloto, foi quem idealizou o chamado Eixão do Lazer. A ideia era entregar aos pedestres uma estrutura criada para automóveis pelo menos um dia por semana. O sucesso não podia ser maior; a cidade passou a se encontrar no local, a pé, em bicicletas ou fazendo piqueniques.

Alguns governantes chegaram a cogitar o fim do projeto, na justificativa de que o trânsito havia aumentado muito aos domingos. Foram sufocados pela vontade da população. No auge da pandemia, por pelo menos três meses, o trânsito de automóveis voltou, para evitar aglomerações. Mas o Eixão do Lazer voltou há algum tempo.

E Haroldo Meira – que morreu em 2013 – ficaria orgulhoso de sua maior ação, mesmo que nunca tivesse sido visto sentado num selim ou fazendo cooper (ele preferia exercer suas habilidades de pescador e de cozinheiro).

Mas o publicitário tinha a sensibilidade de entender as massas e, cada vez mais, a população abraça a ideia de forma criativa e espontânea, aproveitando a temporada sem chuvas. Além da faixa de asfalto, os canteiros laterais, mesmo com a grama rala e cinzenta desta época do ano, são ocupados, oferecendo a sombra das grandes árvores – mangueiras, pés de jamelão, cambuís, flamboyants – para o pessoal se refestelar.

E onde tem gente, sinal dos tempos, tem furgão de comida – que no português moderno chamam food truck. Ninguém precisa levar comida: tem cachorro-quente, acarajé, galinhada, caldo de feijão, batata frita, jabá, milho cozido, hamburger, pipoca, tudo. Para beber, sucos, cervejas, chopes artesanais aos montes (será que todo mundo agora faz chope em casa?) e batidinhas.

O melhor é a música ao vivo, com profissionais e amadores se alternando. Na Asa Norte, na altura das quadras 11/12, encontra-se uma banda de rocks clássicos, um trovador solitário cantando canções mineiras, uma dupla atacando pop brasileiro e grupos de choro.

Um deles merece destaque até por já ter conquistado público próprio e fiel: o Choro no Eixo, formação liderada por Márcio Marinho e Paulinho Santiago (legitimo herdeiro de Eli do Cavaco), ambos no cavaquinho, Dudu 7 Cordas, Gilson Mendes (surdo) e Valério Xavier (pandeiro). O grupo é democrático e segue a tradição gregária do choro. A cada semana outros músicos aparecem para participações especiais, valorizando a improvisação sobre temas clássicos e alguns choros autorais. Como a vida de músico anda difícil, pedem uma contribuição pelo pix: 313.412.331-20.

Ao lado, casais estendem cangas, crianças brincam, senhores perdem a compostura da repartição, senhoras levantam os braços e fecham os olhos, cachorros perturbam; é um ‘acontecimento’ com aquela carga positiva e libertadora que os norte-americanos chamam de happening.

No céu, Haroldo brinda; ao som do choro.

Publicado no Correio Braziliense em 29 de agosto de 2021