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Cidadãos exemplares

Publicado em Crônica

Meu amigo já tem mais de 70 anos. Bem mais. Duplamente aposentado, tem boa renda, paga seus impostos e, mesmo sem precisar, vota em toda eleição e ainda briga pelo candidato escolhido. Até no clube. Participa do grupo da paróquia ao lado da esposa, é bem informado, inteligente e gosta de ler. É o tal cidadão exemplar.

Mas já faz algumas semanas que ele anda olhando de lado, desconfiado, dando toda pinta que está fazendo coisa errada. Nas noites de terça e quinta ele sai de casa, de máscara, dá uma desculpa qualquer pra quem fica vendo a reprise da novela, e vai encontrar os amigos no bar. É uma reunião clandestina.

Os seis vetustos senhores convenceram o proprietário a abrir o estabelecimento toda noite. Abrir não é o termo exato. Cada um que chega bate três vezes na porta metálica que é levantada até a metade para que entrem agachados, como se estivessem frequentando um aparelho de resistência numa época de repressão.

É uma situação insalubre. Um bando de macróbios – acrescidos de outros mais jovens que descobriram a tramoia – trancados num cubículo, entre a parede e o balcão, falando não muito alto para não despertar a atenção da clientela da padaria vizinha, segurando a vontade de xingar o apresentador do jornal da TV.

Eles acreditam que as mulheres não sabem de nada, mas é de se duvidar. Mulher sempre sabe. Minha teoria é que, se eles não aguentam mais ficar em casa o tempo todo, elas também não suportam que eles espalhem suas manias, humores e desarrumações o dia inteiro. E preferem olhar para o lado.

A turma não aguenta mais o isolamento total. No início todo mundo respeitou os decretos, as vontades dos cientistas e se recolheu. Tentaram levar o hábito de toda noite para as respectivas varandas, abriam uma garrafa e se punham a ligar um para o outro, mas logo desistiram. Era patético demais.

No boteco, a bebida é o que menos importa. O objetivo é a convivência, ainda mais quando se forma uma confraria informal, sem títulos e pompa, mas com aquela intraduzível aura de camaradagem, mesmo – ou principalmente – quando as opiniões são diferentes. É o ambiente perfeito para a troca de ideias; e algumas vezes de insultos. É como o Congresso, mas sem negociatas.

Semana passada – valendo a proibição para o funcionamento de bares – não resisti e fui conferir a maquinação. Gostaria de dizer aqui que foi por puro interesse jornalístico, mas seria uma mentira muito cabeluda: era saudade do bar mesmo. Ainda que soubesse que poderia ser pego no malfeito, valia o risco.

Há uma certa ordem, ajustada com os frequentadores; todos usam máscaras, devidamente afrouxadas para permitir goles e petiscos, é proibido fumar e cumprimento só com o cotovelo, embora o espaço exíguo não permita muita distância. A falta de ventilação provoca um calor sufocante, mas ninguém reclama.

É como disse um dos presentes, sem esconder a felicidade:

– O melhor do boteco é a distância que ele fica da casa da gente.

Publicado no Correio Braziliense em 12 de julho de 2020