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Água que vem do céu

Publicado em Crônica

Em dezembro de 1957 pouco mais de 2.200 pessoas moravam na Cidade Livre, nome original do que hoje conhecemos como Núcleo Bandeirante. Era o centro comercial da capital que estava sendo construída, atendendo aos mais de sei mil moradores do Plano Piloto e outros três mil que ficavam nos acampamentos das construtoras.

A cidade tinha apenas um ano de idade, desde que Bernardo Sayão havia assentado pessoalmente o restaurante Pellechia, um hotel, dois mercados e um açougue. Já tinha outros hotéis, lojas, casas noturnas e até algumas indústrias pequenas, muitas oficinas mecânicas e até uma moagem de café.

Foi ali que, no dia 14 de dezembro, desabou o primeiro temporal que se tem notícia no que seria o Distrito Federal.

As construções eram todas precárias, porque aquela cidade nasceu para ser demolida assim que Brasília fosse inaugurada. Paredes e pisos de madeira, teto de zinco ou palha, puxados de lona, ruas de terra batida, conforto mínimo; parecia com as cidades do velho-oeste norte-americano que se via nos filmes – a diferença é que não eram permitidas armas.

Era uma época de muito trabalho para o incipiente Corpo de Bombeiros. Com tanto material de fácil combustão, fogões de lenha, tempo seco e vento forte, o fogo se alastrava com velocidade. E havia também a esperteza da população: cada sinistro era compensado com uma casa de alvenaria construída pelo governo no mesmo lugar do incêndio…

O livreiro Jorge Brito, alfarrabista das letras e cousas do DF, tem vários exemplares de jornais editados no local, desde o DC-Brasília até o Brasília em Foco, do cearense Lourival Pinto Bandeira. Mas eles só seriam publicados anos depois, a partir de setembro de 1959, antes disso só havia os apontamentos oficiais e o registro oral do que acontecia naquele núcleo improvisado.

Desta forma, só se sabe daquele primeiro pé-d’água por causa dos estragos que ele provocou, registrados pelas empresas construtoras em seus borderôs, acrescidas de relatos de testemunhas de quem viu o céu escurecer de repente e a água cair com violência, acompanhada de trovões, raios e rajadas de ventos. Não havia nem como se proteger.

A obra do castelo d’água da usina de Saia Velha, que estava sendo construída para fornecer energia para o Catetinho e aeroporto, além de áreas residenciais da Asa Sul, foi literalmente por água abaixo. A barragem do Ipê também não resistiu; foi parar no Riacho Fundo. Choveu em outros pontos do DF, mas com menos estragos.

No detalhado relatório da missão Cruls, de 1894, que explorou a região para determinar se havia condições de trazer a capital para o meio do país, não havia qualquer advertência sobre uma tempestade como aquela. Ao contrário, a comissão classificou como ameno o clima do planalto central, indicando temperaturas constantes, chamando a atenção para a leveza e pureza no ar.

Décadas se passaram, a cidade cresceu. Toneladas de concreto e asfalto foram aplicados em todos os cantos da capital. Mas os temporais continuam com a mesma força dos primeiros tempos, trazendo medo e o único consolo de encher as barragens.

Publicado no Correio Braziliense em 6 de março de 2022