Quixote paraibano

Publicado em Crônicas

 

Severino Francisco

 

Em 30 de janeiro, Vladimir Carvalho fez aniversário de 87 anos e eu passei batido. Ele é do signo de aquário e, como ainda estamos na quadra dessa influência dos astros, celebrarei o ilustre personagem. Em Brasília, quase todos os que lidam com o cinema têm uma dívida de gratidão para com Vladimir.

 

Paulo Emílio Salles Gomes e Nelson Pereira dos Santos ensaiaram um projeto de curso de cinema na Faculdade de Comunicação da UnB, mas quem transformou a utopia em realidade foi Vladimir, nas décadas de 1970 e 1980. Essa é a matriz do cinema brasiliense. Ele é um Dom Quixote paraibano, idealista, mas pragmático.

 

No fim dos anos 1980, Glauber Rocha trabalhava na redação do Correio e filmava A Idade da Terra. Certo noite, Glauber apareceu na casa do amigo paraibano e fez um estranho pedido: “Vladimir, você tem um baseado aí para me arrumar?” A pergunta provocou o espanto. Vladimir é caretíssimo, não bebe nem bebida alcoólica, a ponto de ganhar dos amigos o apelido de Boêmio Águas de Lindóia.

 

Aquariano não preciso de nenhum aditivo químico, já nasce pilhado pela própria natureza. Mas como Vladimir é muito amigo dos amigos, ele telefonou para todos os conhecidos fazendo apelo ao estranho pedido. Ninguém entendeu nada daquela consulta vindo do boêmio Águas de Lindoia. Eu também sou da turma dos boêmios Águas de Lindoia.

 

Corte para outra história. Na passagem dos 80 anos, a comunidade cultural comemorou a data com uma festa animada no CCBB. Fiz uma intervenção qualquer, mas não fiquei satisfeito, achei que estava aquém da grandeza do personagem e da relevância do momento.

 

Quando o encontro formal terminou, esperei Vladimir na saída e disse a ele considerava muito importante celebrar as pessoas enquanto estivessem vivas. Citei a magnífica frase de Cartola: “quem gosta de homenagem depois de morto é estátua”

 

Vladimir riu, chegaram mais pessoas e eu me lembrei do samba de Nelson Cavaquinho, Quando eu me chamar saudade. Não sou nenhum Jamelão puxando samba, mas ensaiei a primeira parte, meio desafinado e desentoado: “Sei que amanhã, quando eu morrer/Os meus amigos vão dizer/Que eu tinha um bom coração/Alguns até hão de chorar/E querer me homenagear/fazendo de ouro um violão”.

 

Mas, para a minha surpresa, todos da roda conheciam o samba de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito na ponta da língua, pegaram a deixa, começaram a bater palmas e encorparam o samba, agora mais afinado. De repente, formou-se uma roda animada em torno de Vladimir, com todos cantando, marcando o ritmo com as mãos e levados pela música contagiante: “Mas depois que o tempo passar/Sei que ninguém vai se lembrar/Que eu fui embora/Por isso é que eu penso assim/Se alguém quiser fazer por mim/Que faça agora.”

 

O samba todo é lindo, e a última parte é arrasadora: “Me dê as flores em vida/O carinho, a mão amiga/Para aliviar meus ais/Depois, que eu me chamar saudade/Não preciso de vaidade/Quero preces e nada mais.” Mirei Vladimir, os olhos deles relancearam marejados, mas ele resistiu firme, pois é cabra macho paraibano. No entanto, eu acho que, por dentro, ele chorou as tais lágrimas de esguicho de que falava Nelson Rodrigues, com aquela roda de samba improvisada em sua homenagem. Vamos celebrar a vida. Vamos fazer um brinde ao Vladimir com vinho ou com Águas de Lindoia!

PS: A TVT exibe, amanhã, às 21h30, pelo canal https://www.youtube.com/redetvt, o documentário O cinema segundo Vladimir Carvalho, de Maria Maia.

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