Flamenguista doente

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

 

O Flamengo joga com o Coritiba hoje na Arena Mané Garrincha e eu me lembrei da história de um dos rubro-negros mais fervorosos. Ary Barroso poderia dizer com Maiakóvski: “Comigo a anatomia enlouqueceu?/Eu sou todo coração”. E o coração de Ary era ardentemente rubro-negro.

 

Tornou-se rubro-negro doente depois de ser humilhado e ofendido pelo Fluminense, o primeiro time de coração, do qual tinha a carteirinha de sócio. Em 1929, Ary Barroso foi ver um jogo do Fluminense contra o Andaraí nas Laranjeiras.

 

O tricolor tomava um passeio do Andaraí, no primeiro tempo, que já caminhava para a goleada: 3×0. Ary estava transtornado e, para completar, um dirigente pediu a ele que tocasse um pouco de piano para entreter os sócios. Ary ficou uma fera, replicou que não viera ali para divertir ninguém, mas para ver o Fluminense.

 

Depois de vacilar entre Botafogo e América, Ary seria Flamengo até morrer. Compositor, pianista, animador de programas de auditório, autor teatral, locutor esportivo, vereador e boêmio de carteirinha, o autor de Aquarela do Brasil, Bahia e Está faltando um zero no meu ordenado, era um trabalhador frenético. Em tudo que fazia, deixava a marca de originalidade.

Gostava de futebol, mas, antes de tudo, venerava o Flamengo. Como locutor esportivo, seria trucidado pelas redes sociais se estivesse vivo. Torcia e se retorcia pelo Flamengo com a maior desfaçatez: “O Flamengo vai ao ataque. Ipojuca passa para Maneco, na boca da meta para Ademir. Eu não quero nem olhar. Passou raspando a trave”.

Não hesitava em esculhambar os próprios jogadores do seu time de coração: “Não tem ninguém para chutar. Se não tiver ninguém, eu vou lá e chuto”. Ou em secar os adversários sob o gol iminente: “Ih, lá vem os inimigos. Eu não quero nem olhar.”

 

Protagonizou aventuras hilárias, surreais e delirantes. Naquela época, os profissionais da imprensa não tinham cabines. Precisavam se virar no meio da multidão. Na hora de gritar o gol, era um deus-nos-acuda, ninguém entendia nada. Por isso, Ary introduziu a famosa gaitinha para transmitir o gol. No do Flamengo, ele soprava muitas vezes com furor. No dos adversários, dava só uma sopradinha quase inaudível.

 

Certa vez, Ary se meteu a dar opinião sobre a eleição do Vasco para apoiar um amigo, e o caldo entornou. O clube da cruz de malta o proibiu de entrar em São Januário. Mas Ary não se abalou. Instalou os equipamentos em um telhado da vizinhança e transmitiu a partida até ser descoberto pela torcida vascaína.

 

Em outra ocasião, também foi impedido de narrar uma partida do Brasil contra a Argentina em Montevidéu, porque havia um contrato de exclusividade da Rádio Mayrink Veiga. O flamenguista da Rádio Tupi se mandou para o Uruguai, mas a Mayrink Veiga acionou a polícia para garantir a exclusividade. No entanto, Ary não desistiu. Viajou até Buenos Aires e transmitiu o jogo de lá, ouvindo a voz de Oduvaldo Cozzi, locutor da Mayrink Veiga.

 

Mas a declaração de amor mais sensacional ao Flamengo foi a que Ary deu ao receber convite para ser o diretor musical da Walt Disney Productions. Pediu 24 horas para pensar, não aceitou e justificou para um Walt Disney perplexo: “Because ‘don’t have’ Flamengo here.'”

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*