Blusa de lã

Publicado em Crônicas

 

Severino Francisco

 

Neste período, as noites brasilianas quase que clamam por uma festa de são-joão para aquecer o corpo e a alma. Definitivamente, sou tropical e solar; a estação fria me deixa meio deprimido; ela me transmite uma sensação metafísica gélida na alma.

 

Percebo que as sogras são alvos preferenciais de piadas. Mas, de minha parte, confesso que fui agraciado com a dádiva de ter sogra e sogro maravilhosos, quase que segunda mãe e segundo pai para mim.

 

Meu sogro era de Itapipoca, sertão do Ceará, região dos temíveis índios urubu kaapor, os guerreiros mais bravos do país.E me parece que ele herdou algo da bravura e da altivez dos kaapor. Com o doutor Guarany Cabral de Lavor, engenheiro agrônomo e ecologista, não havia meio termo.

 

Respondia a tudo de maneira muito assertiva: “positivo” ou “negativo”. Certa vez, os netos acuaram uma cobra no sítio e, com quase 100 anos, a voz do doutor Guarany atroou: “Espera aí, seus bestalhões, não vão matar cobra nenhuma. Elas são predadoras de ratos, vocês a matam e depois a área ficará infestada de roedores”.

 

Em outra ocasião, perguntei a ele se estava gostando da comida e me respondeu ríspido e fulminante: “Como para não me suicidar”. A franqueza bruta nordestina podia chocar, mas era um sinal de caráter. Sempre que ia ao sítio, observava que o meu sogro ficava transido de frio, protegido apenas por uma camiseta finíssima. Não era por falta de dinheiro para comprar agasalhos.

 

Felizmente, ele tinha uma aposentadoria digna. Mas era turrão, só admitia trajar a camiseta levíssima, a calça de algodão e as sandálias havaianas, como se fosse um São Francisco sertanejo bravo. No entanto, preocupado com a situação, bateu-me uma intuição: resolvi doar a ele a blusa de lã mais reforçada que eu tinha.

 

A minha esposa levou a roupa, e ele teve a reação previsível: rechaçou o presente com veemência: “Eu sou lá homem de usar um troço pesado como este? O Chibatinha é gente fina, mas não tem senso das coisas”. O tempo passou, o frio ficou mais rigoroso e o fato é que ele passou a se defender da estação com a blusa de lã. E, não apenas isso, ela se tornou uma espécie de segunda pele.

 

Era difícil convencê-lo a conceder um tempo para que a blusa fosse lavada. Quando percebi que havia assimilado plenamente a roupa, não deixei barato: “Doutor Guarany, o senhor tem um genro bestalhão, sem o menor senso das coisas, traz umas blusas pesadas, um estrupício que ninguém consegue usar”. Enrolado até a alma na referida blusa para se proteger do frio, ele desatou um riso e comentou: “É, Severino Francisco, às vezes, a gente queima a língua”.

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