A polêmica do samba

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Depois que li notícia da formação do Bloco Em Rosa, dedicado a cantar o repertório de Noel Rosa, entrei no embalo do compositor de Vila Isabel. E, como ainda não saí, gostaria de evocar a célebre polêmica de Noel Rosa com Wilson Batista, em 1933 e 1934, que rendeu nove sambas.

Noel já era famoso, com tal magreza que, segundo ele próprio, se andasse de lado todos pensariam que estava ausente. Wilson não passava de um rapazola de 20 anos a assediar outros cantores mais conhecidos em busca de emplacar alguma de suas composições nas emissoras de rádio do Rio de Janeiro.

Tudo começou com um samba de Wilson Batista que fazia a apologia da figura clássica do malandro, intitulado Lenço no pescoço: “Meu chapéu de lado/Tamanco arrastando/Lenço no pescoço/Navalha no bolso/Eu passo gingando/Provoco e desafio/Eu tenho orgulho em ser vadio”.

Noel não gostou e replicou em alto estilo, implodindo verso a verso com a mitologia do malandro desenhada por Wilson: “Deixa de arrastar o teu tamanco/Pois tamanco nunca foi sandália/E tira do pescoço o lenço branco/Joga fora essa navalha que te atrapalha/Com chapéu do lado deste rata/Da polícia quero que escapes/Fazendo samba-canção/Já te dei papel e lápis/Arranja um amor e um violão”.

O arremate de Noel é sensacional ao estabelecer uma distância crítica em relação ao culto da esperteza carioca e à capacidade de resolver tudo com um jeitinho. Noel inverte e subverte a aura da vadiagem, propondo um corte no mito e uma saída bem-humorada para os tempos civilizados: “Malandro é palavra derrotista/Que só serve pra tirar/Todo valor do sambista/Proponho ao povo civilizado/Não chamar de malandro/E sim de rapaz folgado”.

Wilson Batista não poderia deixar em branco a provocação e revidou com Mocinho da Vila: “Você que é mocinho da Vila/Fala muito em violão/Barracão e outras coisas mais/Se não quiser perder o nome/Cuide de seu microfone/E deixe quem é malandro em paz”. Na segunda parte, Wilson retoma o embate entre as figuras do malandro e do otário: “Injusto é seu comentário/Fala de malandro quem é otário/Mas falando não se faz/Eu de lenço no pescoço/Desacato e também tenho o meu cartaz”.

Os desdobramentos da polêmica estão registrados em um precioso CD produzido pela Funarte. Houve uma trégua, mas quando Noel lançou o belíssimo Feitiço da Vila, em 1934, cantando as excelências do bairro,  Wilson vislumbrou a chance de revidar. Wilson contra-atacava Noel com muita verve, no samba Conversa fiada: “É conversa fiada/Dizer que a Vila tem feitiço/Eu fui ver para crer/E não vi nada disso/A Vila é tranquila/Mas cuidado/Antes de dormir/Dê duas voltas no cadeado”.

Na segunda parte, Batista continua a desmontagem poética dos versos de Noel: “Eu fui à Vila ver o arvoredo mexer/E conhecer o berço dos folgados/A Lua nesta noite demorou tanto/Me assassinaram um samba/Veio daí o meu pranto”.

O samba de Wilson era muito bom na melodia e na letra. Mas, independentemente dos méritos próprios, ele entrou para a história pelo fato de ter suscitado Palpite infeliz, uma das mais inspiradas canções de Noel: “Quem é você que não sabe o que diz/Meu Deus do céu, que palpite infeliz”, desfechava o poeta de Vila Isabel, que propunha uma malandragem iluminista: “A Vila tem um feitiço sem farofa,/Sem vela e sem vintém/Que nos faz bem”.

A resposta foi tão brilhante que Wilson apelou e jogou pesado com o samba Frankstein da Vila, referindo-se à deformação do queixo do poeta da Vila, nascido de um parto a fórceps, que o magoava e humilhava: “Boa impressão nunca se tem/Quando se encontra um certo alguém/Que parece o Frankstein…”

O mais surpreendente é que a causa da polêmica, na verdade, não era a imagem do malandro; era mulher. Wilson arrebatara uma cabrocha de Noel. Ao apresentar a polêmica para alunos, no começo de 2010, um deles comentou: “Se fosse hoje, a polêmica não renderia sambas; renderia cabeçadas e socos, como ocorreu na polêmica entre Chorão e Marcelo Camelo”.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*