A morte de Nelson

Publicado em Crônicas

 

Severino Francisco

 

Nelson Rodrigues nunca teve problemas em falar sobre a morte. Ela sempre esteve colada em seu corpo e ele jamais se esquivou de encará-la em crônicas, contos, peças ou entrevistas: “A morte é anterior a si mesma. Começa antes, muito antes. É todo um lento, suave, maravilhoso processo. O sujeito já começou a morrer e não sabe”.

 

O amor e a morte eram os grandes temas de sua vida: “Morrer significa, em última análise, um pouco de vocação. Há vivos tão pouco militantes que temos vontade de lhes enviar coroas ou de lhes atirar na cara a última pá de cal. Esses, sim, têm a vocação da morte”. Apesar da obsessão, Nelson tinha uma enorme e visceral vocação para a vida.

 

A última crônica que escreveu não poderia ser mais dramática, épica e comovente. Nelson estava muito doente, debilitado desde os anos 1930, quando sobreviveu a uma tuberculose. A doença no pulmão se irradiou pelo corpo e fragilizou, especialmente, o coração.

Estávamos no início de dezembro de 1980. Disputavam a final do campeonato carioca o Vasco da Gama e o Fluminense, time de coração de Nelson há 60 mil anos antes do paraíso. O médico e amigo do cronista, doutor Stand Murad, recomendou expressamente evitar qualquer emoção forte.

 

Nelsinho Filho proibiu que o pai ligasse o radinho de pilha e prometeu relatar todos os lances com detalhes. Ambos estavam com 200 megavolts de tensão. E se o Vasco fizesse um gol? E se o Flu empatasse e virasse o jogo? E se o Vasco revertesse o resultado? Não importava, qualquer acontecimento ou placar eram perigosos.

 

Nelsinho tremia de emoção, mas desconversava: “O Flu está bem”. A partida virou 0x0. E logo no início do segundo tempo, o zagueiro Edinho cobrou uma falta e fez o gol que daria o título ao Fluminense. Nelsinho chorou lágrimas de esguicho, mas segurou a notícia. E se o Vasco virasse? Ufa, finalmente, o drama acabou. Contudo, havia ainda o mais difícil: como contar a Nelson sem desencadear uma violenta emoção.

 

Com habilidade, Nelsinho declarou de maneira contida: o Fluminense era campeão. Nelson não tinha forças, mas arrancou um grito: “Preciso escrever”. Não conseguia ordenar as palavras. Resolveu ditar para Nelsinho a última crônica: “Amigos, em futebol, nunca houve uma vitória improvisada. Tem sido assim através dos tempos. Tudo começou 6 mil anos atrás. Vocês compreenderam?”.

A crônica foi publicada em 2 de dezembro e, 18 dias depois, Nelson morreria: “A maior dignidade da morte é física. Nunca o homem é tão belo como quando está morto”, escreveu Nelson: “Porque tem então assegurada a eternidade, é na morte que o homem tem o seu rosto verdadeiro. Na vida, usamos máscaras sucessivas e contraditórias. Só a morte revela a nossa verdadeira face”.

 

Em uma entrevista a Otto Lara Resende, ao ser perguntado sobre quais seriam as últimas palavras no leito de morte, Nelson respondeu: “O Marx é uma besta. Que boa besta é o Marx!”. Nelson ficava indignado com o fato de o filósofo alemão nunca ter escrito nenhuma linha sobre o tema essencial. Mas Nelson partiu feliz, no êxtase do campeonato do Fluminense: “A morte é um grande despertar”, intuiu o nosso profeta do óbvio.

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