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Violência sistêmica, pobreza e mães encarceradas são um ciclo que prejudica as crianças, reflete o médico Drauzio Varella

Publicado em Cursos / seminários

São Paulo – O médico Drauzio Varella está preparando uma série de vídeos sobre a primeira infância, com o objetivo de passar conhecimentos de saúde de modo simples e prático, como habitualmente faz. Inspirado por esse momento de aprofundamento no tema e convidado para participar do oitavo Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, ele traçou um paralelo entre a violência e a pobreza sistêmicas, a política de encarceramento e as consequências drásticas para as crianças, especialmente na primeira infância.

Flávio Moret/Divulgação

Além de colaborar com o programa Fantástico, da TV Globo, Drauzio Varella atende, semanalmente, mulheres num presídio feminino de São Paulo. “As que têm 25 anos e não tem filhos ou são inférteis ou são gays. Outro dia, atendi uma de 28 anos que disse que estava muito feliz. Num presídio, é de se estranhar. Perguntei por que. Ela respondeu: é que nasceu meu neto, estou velha já. Tem outra de 40 anos que já tinha três bisnetos”, relatou. A natalidade das encarceradas, classificou ele, como crueldade, pois as crianças crescem sem as mães.

O que também tem relação com paternalidades falhas. “Os homens colocam filho no mundo e deixam para as mulheres. A mulher vai ter que trabalhar, mas não tem com quem deixar o filho. Aí, as decisões vão se atrapalhando, ela engravida de novo… Como essa mulher vai cuidar dessas crianças e ser a provedora do lar?”, questionou. “Temos que dar uma bolsa para as que não engravidarem”, brincou. “Porque temos que cuidar dessa criança, dar bolsa-escola e, depois, construir cadeia para elas, pois se perdem, conhecem criminosos…”, lamentou.

Muitas vezes, reflete o médico, o envolvimento com o crime se dá pelos contatos feitos nas periferias e, quando uma mãe recebe uma proposta de ganhar R$ 500 para transportar uma droga, até para dentro de um presídio, ela aceita para conseguir dinheiro para cuidar dos filhos. “Ou então elas aceitam levar droga para o namorado ou marido preso. Aí, pega com tráfico de entorpecentes, ela, que largou criança em casa, já não volta para casa. Vai para a delegacia, é presa em flagrante, e os juízes dão quatro anos de cadeia…”, continuou.

“Às vezes, essa mãe deixou o filho de 7 anos cuidando de dois irmãos menores… Aí ela não volta, ninguém sabe onde está, até que descobrem que ela está presa. E quem vai absorver três crianças? Cada parente pega uma, aí já destruiu a família.” E o pior de tudo, reflete o médico, é que não há nenhum ganho nisso. “Quem ganhou com isso? As crianças não ganharam, a mãe não ganhou nada, e a sociedade vai manter ela lá e também não ganha nada.” Para Drauzio Varella, é um mito afirmar que existe impunidade no país.

Flávio Moret/Divulgação

“Em 1999, o Brasil tinha 90 mil presos. Hoje tem 720 mil.” E eles vivem em situação de superpopulação cacerária. “Nós entregamos as cadeias para o crime organizado, que virou um poder paralelo. Numa cela com 30 pessoas, a gente não consegue garantir segurança. Quem garante será o crime que se organizou.” O envolvimento com o crime e passar períodos na prisão parece passar hereditariamente, mas não tem a ver com genética, mas com falta de oportunidades e condições. “Hoje, eu atendo meninas que dizem: você tratou da minha avó, da minha mãe, do meu avô no Carandiru… São gerações presas”, relatou Drauzio.

“Que sociedade é essa que vai punir alguém que já veio de uma situação inferiorizada. E, na cadeia, essa mulher conhece gente mais experiente e vai aprender como agir no crime”, apontou. Assim, a reclusão não traz consigo restauração ou preparo para reinserção à sociedade. Tudo isso é fruto de uma desigualdade enorme. “As pessoas de classe média reclamam: ah, roubaram meu celular. Vá à periferia ver o que as pessoas passam por lá”, instigou.

“Na periferia não tem espaço, não tem quadra ou campo para jogar bola. Ficam lá os moleques de 12, 13 anos fumando maconha na rua. Se não oferecermos perspectiva para esses meninos, não vamos ter paz nas ruas”, disse. “Não é possível manter esse nível de desigualdade e querer andar em paz na rua.” E o melhor momento para agir a fim de combater tanta desigualdade é a primeira infância, a fim de permitir que os filhos das famílias pobres cresçam, se não com condições de igualdade, mas, pelo menos, melhores do que sem intervenção alguma.

*A jornalista viajou a convite da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal