urubu

Urubus malandros

Publicado em Crônica

Pássaros migram. Esta era a única explicação que o meu amigo tinha para o repentino sumiço dos inquilinos alados que insistiam em tomar conta da cobertura do apartamento dele, no Sudoeste – e sujar. Nem escondia a alegria; voltou a convidar a namorada para tomar um vinho sem ser surpreendido com imundícies ou voos rasantes sobre a cabeça.

Foram três anos de sossego. Mas eles voltaram. Justamente no momento que o Fluminense, time do coração do amigo, luta para se livrar da zona de rebaixamento do Brasileiro, os urubus refizeram o pouso no mesmo local. Parece provocação.

Urubus são os lixeiros do mundo animal; limpam carcaças deixadas no campo e nas cidades, contribuindo para evitar a disseminação de doenças. Por este motivo, são protegidos pela Lei; quem matar se arrisca a pegar até um ano de prisão. Tinham tudo para serem simpáticos mas, como o doutor Cesare Lombroso diagnosticou, somos preconceituosos, e a aparência não ajuda.

Foi exatamente a possibilidade de puxar uma cana que fez com que o amigo não tomasse atitude mais drástica contra a turma que, afinal, pertence à família dos condores. A estirpe nobre, no entanto, não aplacava a ira, aumentada a cada excremento recolhido, a cada susto.

Tentou armas não letais, inclusive um aparelho ultrassom que o vendedor garantiu que espantava de barata a coruja. Mas aqueles urubus não se intimidaram: ou eram surdos ou encaravam qualquer coisa para degustar os quitutes que o vizinho deixava. Sim, era o morador do lado quem atraia os pássaros.

O inconveniente deixava restos de carcaça de frango para apodrecer no telhado e urubu pode ser feio, mas não é bobo. Faziam evoluções pelo céu, criando um perímetro sobre o bloco e pousavam suavemente sobre a mureta para beliscar o lanche. Na hora de se render às necessidades fisiológicas, voavam para cobertura ao lado.

Numa das investidas, meu amigo se armou de um bodoque – atiradeira, baladeira, estilingue, funda, o instrumento tem vários nomes, mas uma única função. Com uma bola de gude no courinho, disparou. Mas esqueceu-se de abrir a janela. Quebrou o vidro e aposentou-se da vida de atirador.

Nos últimos dias, quem passa pelo Sudoeste pode desconfiar que alguém está festejando alguma coisa durante o dia, tantos são os rojões ouvidos nas horas mais incomuns. Cachorros ficam se enfiando embaixo das camas, amedrontados com os foguetes extemporâneos. Os vizinhos não sabem mais o que pensar daquele rapaz distinto e sempre bem vestido, que faz tanta festa sozinho.

Nos últimos dias foi visto numa casa de fogos, desolado. Queria algo mais potente porque aqueles foguetes de três tiros não estavam adiantando – ao contrário, ele já sonhava com os urubus bailando ao som dos rojões, como se zombassem dele. Foi aconselhado a desistir, mas já tem novos planos: vai atacar a origem do problema.

O vizinho que se prepare, porque as maquinações são as mais crueis possíveis. Ele pensa: se constranger o vizinho, vai ser obrigado a se mudar. E com ele vão os restos de frango. E os urubus.

Publicado no Correio Braziliense em 16 de agosto de 2019