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Um otário barato

Publicado em Crônica

Fim de um ano, início de outro, a gente fica suscetível a um monte de bobagens. E foi assim que a mulher me pegou de surpresa, entrando na minha frente com o braço esticado e a mão espalmada na altura do meu peito: “Você tem coisa mandada; tá tudo escuro. Vou ler a sua sorte”, disse.

O espírito cínico que fica no meu ombro esquerdo me fez pagar para ver, mesmo que o espírito mais racional – o do ombro direito – ficasse me lembrando de um compromisso com hora marcada. Ainda consegui dizer que não tinha tempo para ir a lugar nenhum, mas a mulher já me tangenciou para fora da calçada, dizendo que a leitura seria ali mesmo.

“Cadê o Tarô?”, perguntei. Ela disse que não precisava de cartas, que tudo estava muito evidente e que leria o futuro numa nota de cinquenta reais. Era a primeira vez que eu ouvia dizer de alguém que lia sorte no dinheiro, o que preocupou: só alguém com muita cara de otário receberia uma proposta assim. E era eu o otário.

Me imaginei numa letra de tango. Otário é uma palavra do lunfardo, o dialeto dos malandros portenhos, foi popularizada no Brasil em canções como Otario que Andas Penando, Se Acabaron los Otarios (ambas com Gardel) e El Otario (do uruguaio Gerardo Metallo ou na versão brasileira de João Dias).

Há quem defenda que a palavra surgiu a partir do nome científico da família dos leões marinhos – Otariidae – por serem animais lerdos e pesados, mas é só um chute. E dos piores. Certamente não sou o sujeito mais esperto do mundo, mas também não chego a ser um otário – pelo menos era o que eu achava, até a mulher me encontrar.

Eu disse que não tinha nenhuma nota de cinquenta no bolso, mas antes que pudesse festejar a minha contramalandragem, ela disse: “Qualquer nota serve”.

A mulher não parava de falar; truque para confundir. Era uma espécie de cantochão sem música e modorrento, numa língua parecida com o português em que dizia que mau olhado era coisa séria, que alguém queria me prejudicar muito, uma sucessão de frases que me deixou meio narcotizado e curioso: onde ela ia chegar com aquilo?

Nesse momento eu já tinha uma nota de vinte na mão, me sentindo pelo menos trinta reais menos otário, mas pensando que, se havia apostado R$ 50,00 no bolão da Mega da virada com o pessoal do bar, podia me dar ao luxo de fazer mais uma fezinha – mesmo sabendo que aquela ali não tinha nem números escolhidos pelo Russo para serem sorteados.

O resultado foi um truque de prestigitação. Claro que ela embolsou a grana, mas deu impressão de transformar a nota numa maçaroca de celulose, transformada em seguida em pequenas bolinhas espalhadas na mão dela. E começou a ler bolinhas, mas não esperei pelo resultado; fui embora depois de mais umas frases sem nexo.

Resultado: fiquei R$ 20,00 mais pobre e sem saber a sorte.

Publicado no Correio Braziliense, em 5 de janeiro de 2020