Tragédia sem fim

Publicado em Crônica


Para Umberto Eco, foi um fenômeno de loucura. O mundo foi virado do avesso em 1968, a partir de uma explosão em Paris, que reverberou por todo o mundo ocidental e que, ao completar 50 anos, ainda desafia quem tenta explicar o que aconteceu. Como, aliás, previu o sociólogo Edgar Morin no calor dos acontecimentos.                Em maio daquele ano, uma greve geral paralisou e incendiou a França com uma grande insurreição popular que sacudiu velhas certezas, com alcance inclusive no comportamento social, com a liberação dos costumes, sexo e liberdades individuais.

O Brasil vivia sob regime militar; havia passeatas e protestos por todo canto. Antes mesmo dos eventos de Paris, em março, houve a primeira vítima. No Rio, um estudante morto pela PM virou símbolo – o corpo de Edson Luis chegou a ser usado como instrumento para furar o bloqueio policial na frente da Assembleia.

Em Brasília, a polícia invadiu a UnB em busca de sete estudantes acusados de subversão, que era o termo usado para qualquer um que se opunha a qualquer coisa. Já era agosto. Houve reação e confronto, mas a maior vítima foi um estudante que nunca havia participado de movimentos estudantis. E, como o ano, o drama também não terminou.

Waldemar Alves da Silva Filho tinha 27 anos; estava no terceiro ano do curso de engenharia mecânica, que nunca conseguiria concluir. Diante da confusão provocada pela invasão dos soldados, ele foi ver o que estava acontecendo e chegou próximo ao parapeito do Instituto Central de Ciências. Levou um tiro disparado por um tenente.

A bala ficou alojada no cérebro. Foram nove dias de coma, muitos outros de internação. Até hoje Waldemar não recebeu qualquer reparação pela agressão ou pelas sequelas, que permanecem – perdeu 60% da visão do olho esquerdo e passou a ter dificuldades de raciocínio.

Ao contrário de muitos jornalistas, cartunistas, professores e outros – cerca de 10 mil pessoas – que se opuseram ao regime, todos agraciados com uma gorda indenização paga pela viúva. Calcula-se que essa reparação aos anistiados já custou R$ 13,5 bilhões de dinheiro público; e não há cobrança nem de imposto de renda sobre esses ganhos.

Ainda internado, Waldemar recebeu a visita do então presidente, Costa e Silva, que deu-lhe um abraço e prometeu todo apoio do governo na volta à universidade. Foi um pedido de desculpas, mas não adiantou nada: foi jubilado por não conseguir acompanhar o ritmo do curso. Indenização? Não se falou disso.

Waldemar é irmão do Mestre Adilson, referência da capoeira praticada no Distrito Federal e médico que, durante anos, sustentou uma campanha para que o Estado reconhecesse o direito a indenização para o irmão. Nunca conseguiu nada e cansou.

1968 foi o ano da passeata dos 100 mil, do primeiro transplante de coração feito no Brasil, da promulgação do AI 5, da conquista do título de Miss Universo com Martha Vasconcellos e da inauguração do MASP. Mas para a família Alves e amigos, marca apenas uma tragédia que cruzou cinco décadas e não tem data para acabar.

Publicado no Correio Braziliense em 25 de março de 2018