Andava sumido, mas naquela noite ele apareceu satisfeito da vida. Exalava confiança, olhava os companheiros de copo com aquela postura dos césares, vencedores; sem dúvida, havia triunfado em alguma das batalhas que todos travamos todos os dias, na busca daquela fagulha de felicidade que dá sentido à vida. Ninguém perguntou nada. Nos mandamentos do boteco ninguém pergunta nada; se o camarada quiser falar é por conta e risco dele – ali, tudo pode virar prova (ou galhofa) contra o boquirroto. Mas, ao contrário da mágoa, que pode ser dirimida com um gole da bebida favorita, felicidade é um troço que ninguém segura. O susto não podia ser maior:
– Comprei um paliteiro para mim.
É duro ver um companheiro variar. Antes mesmo do Philippe Pinel o mundo tenta decifrar os primeiros sintomas da loucura. Parecia coisa recém adquirida, até porque o paciente, ou melhor, o amigo sempre fora um sujeito formal, de opiniões firmes, mas sensatas, que ri comedidamente e não perde a linha. Meio chato, até.
O doutor Cacau, nosso psicanalista de plantão, não estava na roda. Portanto, o camarada ficou com o diagnóstico nas mãos de leigos, conceito que herdamos do cristianismo para definir quem não havia recebido as ordens sagradas, mas que ali só servia mesmo para revelar a ignorância geral, com muitos tons cruéis.
“Pirou”, me cochichou o Chico. De fato, o sorriso permanente era estranho entre as rugas dele, mas fiquei pensando se não seria desdém – ou inveja mesmo – de todos nós, depois de uma quarta-feira dura, com pouca satisfação. Foi o próprio Chico o primeiro a explorar melhor a análise, com a delicadeza adquirida no sertão sergipano.
“É de ouro?”. O camarada pareceu não compreender a pergunta, mas entendeu que era para explica. “Quem aqui tem paliteiro em casa?”, desafiou. A troca de olhares revelou o óbvio acachapante: ninguém. É um objeto proibido. E ninguém tinha pensado nisso.
“Um paliteiro é a declaração de independência do homem; mulher tem ódio de palito. Até desses que vêm ensacadinhos”, disse, mostrando um exemplar tirado do galheteiro. Ele falava à vera, sério e até contrariado por ninguém mais dividir com ele os louros – ou melhor, as pequenas hastes pontudas de madeira – da vitória.
No mínimo, isso nos leva a um mistério do mercado: entender o que faz o imutável rosto da Gina – na embalagem, se mulheres não perdoam homem que esgaravata os dentes. Mesmo se estiver trancado no quarto, no escuro.
Dentistas e mulheres detestam palitos, se recusam a entender que o prazer de tirar um fiapo do bolinho de bacalhau incrustado entre os dentes não tem nada a ver com higiene com fio dental. É como dançar com a irmã; a ação é a mesma, mas o resultado é bem diferente.
Nosso amigo exagera na importância do paliteiro, mas para ele, que não pode pisar no chão da própria casa de sapatos – há pantufas na porta, como no Museu Imperial de Petrópolis – é uma libertação. Sente-se um D. Pedro I, desembainhando um palito e bradando pela liberdade.
Publicado no Correio Braziliense em 30 de março de 2018