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O Hino e as fantasias

Publicado em Crônica

O Hino Nacional Brasileiro teve subtraída sua relevância nos últimos tempos, junto com outros símbolos nacionais. Foi sequestrado por néscios que inicialmente pareciam ser apenas selenitas inofensivos, até revelarem a força ignorante que dorme nas turbas e, contraditoriamente, atacarem outros emblemas.

Ao contrário da maioria dos hinos nacionais, de temática exclusivamente belicosa, o nosso divide essa afirmação de testosterona cívica com a exaltação de belezas naturais. Pode-se fazer o reparo que quiser à letra empolada de Duque Estrada, cheia de imagens como céu risonho e berço esplêndido, mas é um alento que precisava ser recuperado.

Por um desses caprichos, está sendo lançada agora uma gravação que João Gilberto fez em 2000, no Teatro de Santa Isabel, do Recife. No meio de algumas das canções que ele ajudou a imortalizar e até músicas de louvação à capital pernambucana, aparece exatamente o Hino Nacional Brasileiro.

No Recife, João Gilberto introduz o hino dizendo que o cantava às vezes em casa e que esta seria a segunda vez que ele cantaria em público, um “pedacinho”, ressaltando que não sabe todo – ao que se saiba ele nunca mais repetiu a dose, cantando exatamente a primeira parte, a mesma que é usada em cerimonias oficiais e até em jogos de futebol.

Pelo menos até o jogo Brasil e México, em Fortaleza, na Copa das Confederações, em 2013, quando a torcida continuou cantando o hino mesmo sem o acompanhamento instrumental. O que se repetiu em outros jogos da fatídica Copa de 2014.

O importante é que João Gilberto – mesmo depois de morto – ajuda o Brasil a recuperar um de seus maiores símbolos, sem a necessidade de se pagar resgate. A interpretação é singela, o acompanhamento ao violão é bem menos intrincado do que se ouve normalmente com o artista, sem as idas e vindas que ele costumeiramente provoca na melodia, como se ele tivesse dando destaque à tão criticada letra.

Não é uma reinvenção do Hino Nacional, como a Fantasia de Gottschalk, compositor norte-americano que usou a melodia de Francisco Manoel da Costa para criar uma nova peça, apresentada inclusive e por ele próprio, ao imperador Pedro II.

Essa Fantasia é tema de celeuma musical há décadas, pelo menos desde que a pianista Guiomar Novaes a incluiu em seu repertório, tocando em praticamente todos os seus concertos. O músico e professor Ernani Braga, ao comentar uma apresentação da celebrada pianista, escreveu que gostaria de ter estrangulado Gottschalk – que, por sorte, a esta altura já estava morto.

Os críticos se incomodavam muito mais com o fato do público ouvir o tema de pé, como se fosse verdadeiramente o Hino e não uma paráfrase, do que com a composição em si, criada de acordo com um costume do século XIX em que variações privilegiavam o virtuosismo do músico, que contava mais do que a qualidade da construção.

O que importa é que o Hino Nacional está de volta, com sua majestosa protofonia para ser cantado a plenos pulmões ou usando um banquinho e violão, como na gravação de João Gilberto.

Publicado no Correio Braziliense em 5 de fevereiro de 2023