Agora a gente pode dizer que a pandemia acabou: o evento será marcado quando os gambás saírem da toca, na próxima quarta-feira, depois de uma hibernação de mais de dois anos. Foi um período maior do que a invernada das marmotas, que chegam a durar até seis meses; mas como marmota não canta, desta vez valeu a pena esperar.
A Turma do Gambá se reúne há mais de três décadas e só teve a atividade interrompida durante a pandemia da covid-19 que deixou cada gambá em seu canto, mas não teve força para parar a música: as sessões passaram a ser via WhatsApp, com dezenas de gravações a cada quarta-feira.
O anúncio da volta da cantoria dos gambás foi feito por um dos marsupiais-chefes, Marco Aurélio, também via telefone, provocando uma enxurrada de manifestações efusivas pelo fim do isolamento, o que faz prever uma noite épica na Galeteria do Lago (ao lado do shopping Pier 21), a partir de 20 horas.
O importante é que durante a hibernação os gambás refinaram o repertório, normalmente selecionado na fina flor da música brasileira, não importando se os compositores são famosos ou não. Alguns dos músicos também se revelaram cantores no período, o que faz a certeza de que serão encontros ainda mais ricos.
Nunca se soube exatamente como era organizada a ordem das músicas que eram tocadas pela Turma do Gambá; talvez – como acontece com a fabricação das salsichas – seja melhor nem saber. Mas, como sempre, eles saberão o que fazer.
Outras rodas de músicos voltaram antes dos gambás. Mais intrépido, o pessoal que se reúne nas tarde-noites de domingo, no bar Grao, que fica no último comércio da avenida principal do Lago Norte, já vem tocando há semanas. A nota triste é que a roda, uma homenagem permanente ao bandolinista Coqueiro (Dionísio Della Penna), está desfalcada de dois craques, o sete cordas Índio do Brasil e o percussionista Valcir Tavares, ambos mortos durante o período de recolhimento.
Ao invés de tristeza, a música é homenagem a todos eles, preservando a alegria que ambos tinham ao tocar com os companheiros. Índio, coronel do exército reformado, tem feito uma falta tremenda, especialmente porque faltam os bordões que organizam o ritmo, quando ele se levantava, violão em punho, e soltava as notas das cordas mais graves, colocando ordem e regulando o andamento.
Valcir, servidor público, ex-presidente do Clube do Choro, também se destacava quando levantava, deixando seu precioso afoxé (de fabricação própria) e puxava as mocinhas para dançar, com o passo elegante e seguro – formando fila como as antigas mocinhas dos dancings de antigamente, mas sem a necessidade de furar o cartão.
A roda do Grao é flutuante, varia a cada semana e veio voltando aos poucos. Um dos últimos a voltar foi Raul Daniel, que quando não está à frente de um computador toca bandolim ou guitarra baiana. Foi um carnaval, antecipando essa anacrônica folia de abril, mas que trouxe a certeza de que é a música que faz a vida da gente voltar ao normal.
Publicada no Correio Braziliense em 1 de maio de 2022