No princípio era o ermo e nessas antigas solidões sem mágoa – para usar a descrição de Vinícius de Moraes – havia uma cidade sem flores. Brasília ainda não havia sido inaugurada quando o presidente norte-americano Dwight Eisenhower decidiu vir lançar a pedra fundamental do que seria a embaixada norte-americana na nova capital.
O Itamaraty preparava uma recepção no Brasília Palace Hotel, um dos poucos prédios já em pé, quando alguém reparou que não havia como decorar o ambiente. Naquele tempo os aviões não eram pressurizados e não havia como trazer flores sem que chegassem murchas. Estava criado o primeiro problema do cerimonial brasiliense: como enfeitar as mesas de jantar.
Era também o tempo do “se vira, mas faz acontecer”. E um jovem funcionário da Novacap, recém-chegado de Inhumas, Goiás, e que gostava de caminhar pelo inóspito cerrado, teve uma ideia.
Eduardo Gomes – que na época já era conhecido como Fernando Lopes, cantor de boleros da Rádio Nacional e das melhores boates da Cidade Livre – colheu pequenas flores, que a olhos menos sensíveis pareceriam gravetos ressecados, fez um pequeno arranjo e mostrou ao chefe.
A engenhosa ideia foi aprovada por Alfredo Ribeiro, que a levou a Ernesto Silva, que a submeteu ao próprio JK. Era a salvação. As mesas foram todas decoradas com as curiosas flores do cerrado e estava criada uma tradição que acompanha a cidade até hoje.
Muitos anos se passariam até que Brasília conhecesse flores mais coloridas, completando o conceito de cidade-parque sonhado na prancheta de Lúcio Costa e nas projeções de jardins de Burle Marx. Ozanan Coelho, então diretor da Novacap, aceitou o desafio do governador na época, Joaquim Roriz, para transformar os balões da cidade em jardins, multiplicando o que ele tinha feito em Goiânia.
Em tempo recorde, Ozanan fez 800 pequenos jardins, coloriu a cidade, trouxe vida às rotatórias e, mais importante, desenvolveu uma produção de mudas suficiente para abastecer os necessários e periódicos replantios e que, ainda hoje, nos viveiros da Novacap, dão trabalho a um grupo de cegos. E mudou a cara da cidade.
Foi uma mudança radical, iniciada com mudas trazidas em dezenas de caminhões, e que deu um susto na população, até então acostumada à terra vermelha que subia em pequenos redemoinhos – os lacerdinhas – ou, quando muito, em gramados ainda incipientes.
Naquele tempo Brasília já vivia tempos favoráveis aos imbecis, e não foram poucas as vozes que se levantaram contra os jardins. Diziam que era desperdício de dinheiro. Um dos mais ativos combatentes continua por aí, fustigando moinhos de vento.
Brasília e Ozanan venceram a ignorância com flores. Ele também foi responsável pelo plantio de milhões de árvores que transformaram definitivamente o perfil da cidade, alternando espécies frutíferas (mangueiras, jaqueiras, jamelões) e floríferas (quaresmeiras, ipês, acácias). Criou pequenos oásis por toda a cidade.
O velho jardineiro é homenageado com um busto colocado no meio de um jardim ainda em desenvolvimento, na pista central do Lago Norte, bairro que ele escolheu para viver. Fernando Lopes continua cantando seus boleros, também no Lago Norte, todos os domingos. São pessoas que mudaram o ermo, trazendo beleza a um lugar inóspito.
Publicado no Correio Braziliense em 18 de dezembro de 2022