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Estante subversiva

Publicado em Crônica

Ando preocupado com nosso amigo Jorge Brito. Temo que, livreiro e sempre com um desses artefatos de papel nas mãos, ele venha a ser confundido com terrorista, ainda mais depois que Rondônia divulgou uma lista de livros incômodos, na mira para serem proibidos na rede de ensino. É assunto já velho, mas preocupante.

Mais um pouco, vão exigir porte de arma para quem andar com livros debaixo do braço. Se abrir para ler, então, a pena pode ser bem mais dura.

Estranha essa ojeriza literária que toma conta do mundo desde muito antes de alguém fazer contas e decidir que 140 letras no tuíter seriam suficientes para contar qualquer história. Mas dá para entender: leitura é mesmo um perigo, porque educa; e gente educada pode ser muito inconveniente.

Se já não bastasse a falta de hábito das novas gerações em folhear, aliada à preguiça mental revelada por algumas autoridades, ainda vem um governo estadual querendo proibir leituras.

Fico imaginando o censor diante de uma estante, olhando as lombadas, quando se depara com um exemplar de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que Machado de Assis escreveu há 139 anos. “Cubas!”, exclama o censor. “Não pode. É propaganda comunista”.

Eu já tinha lido que o tal Brás era um mau exemplo porque quando criança abusava de Prudêncio, o negrinho em que ele montava e maltratava. Mas certamente não foi por racismo que foi parar na lista de proibíveis; até porque o censor e o governador nunca devem ter lido o livro que mudou a literatura brasileira.

Seguindo em frente na inspeção à estante subversiva, o nosso censor se depara com um exemplar de Macunaíma, o Herói Sem Nenhum Caráter, de Mário de Andrade. “Péssimo exemplo”, diz o censor para seu assecla. “O presidente disse que os índios são iguais à gente e têm amor à pátria. Têm caráter”. E segue sem saber que Macunaíma iria virar estrela.

Alguns exemplares à frente, o censor se depara com O Castelo, de Franz Kafka. Se assusta e mistura as bolas: “Esse deve ser aquele ‘kafta’ que processou o ministro da educação. Melhor não deixar nada dele por aqui”. Manda guardar o livro e nunca saberá que K. jamais vai alcançar o tal castelo.

Puxando vários exemplares da estante, o censor parece ter uma implicância pessoal com Rubem Fonseca. O assecla conta: são 18 romances do escritor mineiro recolhidos. Talvez porque sejam livros muito bons, talvez porque ele tenha se lembrado de alguém chamado Rubens e de quem não gostava muito; talvez porque tenha ouvido falar que Rubem Fonseca não goste de ser fotografado. Pior para ele: vai ficar sem conhecer Mandrake.

Mas o censor ficou intrigado mesmo quando viu que o livro Mar de Histórias é creditado a Aurélio Buarque de Holanda. Imaginou que boa coisa não poderia vir de um sujeito com esse sobrenome. “Se não gostamos do Chico, não gostamos também do Aurélio”, disse com aquela autoridade que só os ignorantes têm.

E assim o Brasil tenta virar um País.

Publicado no Correio Braziliense em 16 de fevereiro de 2020