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Espionagem importada

Publicado em Crônica

Alfarrabistas são pessoas que sabem das coisas. Com a cabeça enfiada em livros em tempo integral, eles acompanham as mudanças de um modo mais lento, mas certamente mais seguro; também enxergam o passado com olhos curiosos de quem não se descuida do futuro. É mexendo na papelada que Jorge Brito faz suas descobertas.

Jorge ainda tem uma loja de compra e venda de livros usados – um sebo – na Asa Norte. Já colocou as mãos em bibliotecas preciosas e ainda chora quando vê um livro avariado. Hoje, vive de pequenas descobertas e grandes tesouros, incluindo peças que revelam parte da vida nacional, capítulos que ninguém prestou atenção, mas nada irrelevantes.

Sua mais recente incursão pelo misterioso mundo dos livros revela uma coleção curiosa: livros publicados pelo SNI que ensinam como os espiões brasileiros da época da repressão deviam se comportar – todos importados. São verdadeiros manuais, traduzidos, quase todos, pelo coronel Álvaro Galvão, nome que Jorge já viu em outras publicações da Biblioteca do Exército.

São publicações quase clandestinas, como convém a essa turma. A própria diagramação entrega o jogo, ao usar os tipos de uma máquina de escrever ordinária para criar as páginas, como se fossem aqueles livrinhos rodados em mimeógrafos e com cheiro de álcool. Como se vê, são coisas ultrapassadas. Hoje seria quase um desafio encontrar uma máquina de escrever; mais ainda um mimeógrafo.

Antes do texto anunciado pelo título dos opúsculos, aparece uma advertência. “Esta publicação se destina ao uso interno do SISTEMA NACIONAL DE INFORMAÇÕES e não constitui endosso oficial aos pontos de vista, opiniões ou fatos nela expressos”. Ou seja: publicaram, proíbem divulgar, mas não quer dizer que concordam. Típica tática diversionista, como ensinam os livros de John Le Carré, não é?

Os livros obtidos por Jorge Brito têm títulos curiosos: O Verdadeiro Mundo do Espião, O Sistema de Agentes Duplos, Espiões na Terra Prometida, KGB – O trabalho Sigilosos dos Agentes Secretos Soviéticos, A Arte das Informações e… Sexpionagem.

Este último, de David Lewis, sustenta que “prostituição e espionagem são duas das mais antigas profissões; figuram também entre as atividades mais secretas da humanidade, capazes de gerar profundas influências subrreptícias”. E cita a bíblica Dalila como a primeira espiã sexual.

Talvez essa bibliografia explique porque na maioria dos documentos do SNI liberado ao público as denúncias começavam com “consta que…” – ou seja: eram fuxicos, não informação. Os livros são de origem norte-americana e inglesa, narram fatos passado em outras terras, métodos pouco ortodoxos para conseguir acesso a segredos e disfarçados conselhos ao leitor.

É de se supor que eram distribuídos entre espiões brasileiros, senão teriam sido incinerados (em cinco segundos) como as mensagens dos agentes da U.N.C.L.E. e muito menos teriam chegado às mãos do nosso alfarrabista Jorge, este um autêntico 007.

Pelo jeito, nossos espiões secretos não são mais misteriosos que os agentes lusos que, diz a lenda, tiveram seus nomes publicados no Diário Oficial. A espionagem brasileira parece com as indiscrições das fofoqueiras de bairro, que ficam sabendo segredos de todos e quando não sabem inventam. Eles podiam ser cruéis, mas eram mais parecidos com candinhas.

Publicado no Correio Braziliense em 11 de agosto de 2023