A senhora chegou de repente, saiu do carro e esticou o pescoço, perscrutando o ambiente, obviamente a procura de alguém. Esperou mais um pouco sem falar com ninguém até que desistiu, entrou no carro e foi embora. Joãozinho, o atendente que também faz as vezes de fofoqueiro, disparou:
– Salvo pelo gongo!
Não estamos em Londres. Não há gongo, nem sino, sirene ou corneta no bar para avisar a hora em que o pub para de vender bebida. Mas ele usou uma figura de linguagem para se referir ao cliente que tinha acabado de deixar o estabelecimento, provável alvo da senhora que esperava lavrar um flagrante no local. E a mesa ganhou assunto novo: ‘que papelão’, ‘mulher minha não faz isso’, ‘megera’, ‘frouxo’.
Mas tudo desembocou na semântica. De onde vem essa expressão? Os mais óbvios acreditam que a origem está nas lutas de boxe, no final dos assaltos, marcados pelo clangor do gongo. Muitas vezes é o que salva um pugilista do massacre.
Boxe era briga de rua, disputado sem regras e com mãos nuas; só depois de 1867 é que foi dividido em assaltos, iniciados e terminados em gongadas. Mas a expressão nasceu bem antes, segundo nos informou o professor Azevedo, enciclopédia ambulante nem sempre presente na roda, e que narrou sua explicação a partir de alguns personagens.
“Sabem o que o músico Chopin, o químico Nobel e o político George Washington tinham em comum?”, perguntou o jurisconsulto, já respondendo: “Os três tinham medo de serem enterrados vivos”. E antes que alguém pudesse gongar ou buzinar o vetusto companheiro pela menção à tatofobia alheia ele engatou a história macabra.
Sim, tatofobia é o medo de ser enterrado vivo.
Até o século XVIII eram comuns relatos de exumação de caveiras reviradas ou de caixões arranhados por dentro. Eram vítimas de catalepsia, enterradas vivas, como o personagem de Edgar Alan Poe no conto O Enterro Prematuro.
Essa era a paúra que atormentava o compositor Frederic Chopin, que pediu para ter o coração retalhado antes de ser levado no féretro. Alfred Nobel criou a dinamite, mas exigiu que suas artérias fossem abertas após a morte e Washington escreveu que queria ser velado por três dias antes de ser enterrado.
Vários sistemas de prevenção foram criados para tentar socorrer as vítimas do terrível engano. Foram criados caixões com janela de vidro, outros com espaços para água e comida e até com saídas de emergência, mas a solução mais engenhosa foi bem mais simples: amarrar uma fita na mão dos defuntos, ligada a um sino deixado do lado de fora, onde ficava alguém permanentemente de plantão por alguns dias. Muita gente foi “saved by the bell”, traduzida entre nós como salvo pelo gongo.
O marido ou namorado da senhora que apareceu no bar não parecia correr o risco de acordar num caixão, embora a presa com que ele tenha deixado o estabelecimento – inclusive pendurando a conta – levantasse suspeitas. Mas para Joãozinho podia ser pior.
– Pelo jeito que olhava, só ia jogar terra em cima.
Publicado no Correio Braziliense em 11 de abril de 2021