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Anúncios em pequenas doses

Publicado em Crônica

​Deve estar difícil encontrar um vaqueiro que saiba tirar leite. O anúncio está sendo publicado há dias nas páginas dos classificados e, pelo jeito, nenhum vaqueiro se apresentou para o serviço. Não deve ser um trabalho especializado este de segurar nas tetas de uma vaca, colocar um balde embaixo e caprichar na mira do jato, mas alguma arte há de ser empregada porque o movimento dos dedos e da mão obedece a uma coreografia.

​Mais sorte deve ter tido o anunciante que procurava por uma empregada que durma. Eu mesmo gostaria de uma funcionária que ficasse esperta, fosse ágil. Talvez ele quisesse dizer que estava procurando alguém que pernoitasse na casa e não simplesmente dormisse em serviço, mas o português prega essas peças. De qualquer forma, o anúncio não apareceu mais, o que sugere que a dorminhoca foi encontrada.

​A vida das cidades passa pelos classificados dos jornais. Antigamente eles eram tão importantes que ocupavam parte da primeira página – por décadas um dos mais tradicionais diários do Brasil trazia um “L” de pequenos anúncios na capa, mostrando que eles eram tão importantes quanto as notícias. Mas os classificados estão minguando.

​Há a concorrência da internet, produtos que duram menos, faixas que emporcalham as ruas; motivos não faltam. Mas ainda assim os pequenos anúncios conservam o charme, com ofertas que vão do esoterismo – astrólogos, mães de santo – às sensações mais mundanas, como o aluguel do próprio corpo pelos profissionais do sexo.

​Vez por outra aparece um mistério. Está escrito: “Agência Pétalas de Rosa. Grupo de pessoas livres”. E vem o número de telefone. Um enunciado como este exercita a imaginação mais obtusa. O que faz um grupo de pessoas livres? Seriam escravos sem grilhões? Libertários em luta permanente contra os opressores? Democratas radicais? Libertinos em busca de orgias sem fim?​

Não sei. Preferi não ligar. Aprendi desde cedo que tem coisa que a gente não mexe, até porque a realidade atrapalha a fantasia. É sempre bacana imaginar pessoas sem cabresto, sem grades, donas do próprio nariz, mas desconfio que é um sonho. Muito pouca gente chega nesse estágio. Mas é melhor do que achar que liberdade é uma calça velha, azul e desbotada como dizia aquele antigo anúncio de brim.

Os classificados servem para tudo. De declaração de amor a contos do vigário, de vendas de garagem para quem quer se livrar de tralhas a comunicados de perda de documento, até declaração pública de sumiço de funcionário. Pena que sejam cada vez menos usados, parecendo ter o mesmo destino dos telegramas, das polainas e dos relógios cuco.

Dificilmente teremos um retorno vintage dos classificados, como ocorreu com os discos long playing, as fitas cassetes e até mesmo – pasmem – os VHS cheios de drop-outs, cores borradas e fitas amassadas. É mais um pedaço da história do homem que se vai, mesmo sem ter sido substituído a altura por nenhum outro meio e que carrega parte da vida da cidade. E além de tudo vamos ficar sem saber quem são aquelas pessoas livres.

Publicado no Correio Braziliense em 3 de outubro de 2021