Bateu certa hora, começa um desfile de carros, normalmente dirigidos por mocinhas, que apenas param por breves minutos, esperando apenas que os senhores se levantem, pendurem a conta e entrem no banco do carona. É a alforria relativa que alguns dos maiores de 70 anos têm vivido; o exíguo prazo para frequentar o bar.
Senhores que passaram a vida trabalhando duro, fazendo serão para prover suas famílias, dar boa educação para as crianças e até sustentar alguns luxos, agora aposentados, passam a ter a vida regulada pela prole e pela mulher. O cúmulo da humilhação acontece quando são abrigados a dar uma baforada assim que entram no carro, para quem está no volante conferir qual o tipo de bebida foi ingerido – na frente dos companheiros de copo!
A maioria parece resignada, até inventa desculpa de que é bom ter carona para ir e vir do boteco. Mas há os revoltados, que praguejam – só que como dizia o filósofo Dadá Maravilha, praga de urubu magro não mata cavalo gordo. O problema é que praga é uma prosa longa e, em roda de boteco, não é de bom tom falar mal da patroa.
Mas o nosso amigo não está nem aí para a etiqueta. Vai chegando a hora fatídica, normalmente no melhor do papo, ele começa as imprecações, como se estivesse adjurando para que algum demônio abandone o corpo possuído da cara-metade. “Eu não mereço uma Xantipa a esta altura da vida”, disse.
Xantipa foi a mulher de Sócrates. Virou sinônimo de megera muito mais por causa dos pupilos do filósofo, especialmente Antístenes, que espalhou a história mais escabrosa. Ao chegar pela manhã em casa, Sócrates teria sido recepcionado por Xantipa com um balde com os excrementos da noite anterior; o ocorrido virou uma ilustração famosa de Van Veen (veja acima).
Pode não sido bem assim, afinal Platão a descreve como uma mulher devotada e o próprio Sócrates diz que se casou com ela por causa de seu temperamento argumentativo, que o obrigava a refletir. De qualquer modo, a fofoca ganhou do fato – como costuma acontecer até hoje – mas certamente que o fato de Sócrates ter se casado só aos 60 anos, quando Xantipa tinha 20, e com duas mulheres (Mirto), pode ter colaborado com a irritação da mulher.
Em defesa de Sócrates, a bigamia era permitida porque havia escassez de homens em Atenas e a cidade precisava de crianças.
De volta aos tempos modernos, encontro nosso amigo mais leve, no mesmo bar. A mulher havia viajado e ele se imaginou livre dos grilhões; falava da alegria de ver o Botafogo vencendo, discutiu política sem muitos palavrões, reclamou que o caminhão do lixo tinha mudado o horário (velho fiscaliza tudo) e ria de tudo.
Disfarçadamente, conferia o relógio. Foi se aproximando a hora da carona e ele estava visivelmente incomodado; mesmo sabendo que ninguém iria busca-lo ele esperava. Como se cumprisse um ritual, levantou-se e pagou a conta, sempre olhando para a rua. Foi quando alguém disse: “Mulher da gente serve para duas coisas: encher o saco e fazer falta”
Publicado no Correio Braziliense em 12 de setembro de 2021