A presunção de inocência e a ilegalidade da prisão fundada exclusivamente em decisão condenatória do Tribunal do Júri

Publicado em Direito Penal

Por Rita Machado e Marília Fontenele

Após ser destacado do julgamento virtual pelo Ministro Gilmar Mendes, o julgamento do Tema 1068 da Repercussão Geral, que trata da constitucionalidade da execução imediata de pena aplicada pelo Tribunal Júri, será julgado de forma presencial pelo plenário do Supremo Tribunal Federal.

A questão constitucional debatida diz respeito aos limites da presunção de inocência e à imediata exequibilidade da condenação imposta pelo Conselho de Sentença em razão da soberania dos veredictos.

No julgamento já iniciado, várias questões de extrema relevância foram levantadas e discutidas pelos Ministros, mas, uma em específico, é o tema do presente artigo: a presunção de inocência.

O Ministro Relator, Roberto Barroso, compreendeu que o imediato cumprimento da pena aplicada soberanamente pelo Tribunal do Júri não viola o princípio da presunção de inocência, uma vez que, como princípio – e não regra – pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, devendo ser ponderado com outros princípios ou bens jurídicos colidentes.

Com o devido respeito, a premissa adotada é incompleta, aparentemente pragmática e consequencialista, e com vistas a uma reclamada eficiência do Processo Penal, olvidando-se de sua principal missão enquanto instrumento de contenção do rolo compressor estatal.

É claro que a presunção de inocência não é direito absoluto – afinal, se fosse adotada uma interpretação rigorosa, nem mesmo existiriam as prisões cautelares, temporárias ou preventivas, o que aqui não se defende. Afinal, a imposição de uma prisão antes do trânsito em julgado da condenação poderá se justificar se houver motivação concreta que a embase.

No entanto, quando existente o confronto entre os princípios constitucionais que regem o Tribunal do Júri, estes devem ser resolvidos por meio de uma adequação e harmonização proporcional, sem se esquecer da determinação expressa e clara de que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. E nos parece impossível admitir que este marco seja a condenação proferida ainda e apenas em primeiro grau, mesmo que no Tribunal Popular.

Em outras palavras, consentir com o início da execução da pena nesse momento, sem a possibilidade de uma revisão da sentença por um órgão colegiado, é desprezar a harmonização constitucional entre os princípios da soberania dos veredictos e o duplo grau de jurisdição, que asseguram o controle apto a limitar e legitimar o poder punitivo estatal.

Nesse ponto, relembre-se que o reexame por parte de um Tribunal da decisão dos jurados tem um estreito limite de cognição, sendo essa revisão restrita a aspectos formais – mera retificação para ajuste ao previsto em Lei – ou materiais, visto que nos casos mais graves determina-se a realização de novo júri, não desconstituindo aquilo que foi decidido pelo conselho popular.

Trata-se da opção democrática para assegurar que o cidadão não possa ser considerado culpado sem o devido curso do Processo Penal, com a efetiva proteção de direitos e garantias fundamentais tão caros à nossa sociedade. E é justamente por isso não podemos, logo no início da trilha processual, acusar alguém de haver cometido um crime e, desde logo, restringir sua liberdade como se culpada fosse, sem a comprovação concreta ou a revisão dos fatos imputados, além da comprovação de que o procedimento foi realizado de forma hígida e adequada.

E nesse ponto é preciso rememorar que o Tribunal do Júri é mecanismo de efetivação da democracia, tendo como finalidade, justamente, a imposição de limites ao poder do estado.

Nesse sentido, a presunção de inocência, como princípio basilar do Estado de Direito, garante que o Estado deve comprovar a culpabilidade do indivíduo, que será presumidamente inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio.

Em momentos de discussão jurídica como o que nos vemos atualmente, não podemos esquecer que as restrições não são o parâmetro a ser aplicado para que a presunção de inocência seja efetivada apenas e tão somente nos espaços que sobrem.

Ao contrário.

A presunção de inocência, como direito fundamental, é maior e mais ampla e deve, portanto, determinar, de forma limitada, o seu espaço de restrição.

Diante de tais considerações, podemos concluir que, de acordo com o texto constitucional, ninguém pode ser punido sem que tenha sido considerado culpado e, além, ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

A presunção de inocência veio a atender à igualdade, ao respeito à dignidade humana, à liberdade e ao devido processo legal.

É preciso que se desvincule, de uma vez por todas, a falsa concepção de que a presunção de inocência é posição de vantagem, dando-a o lugar que é dela, que é meramente de equilíbrio, de modo que o constituinte procurou, com a sua instituição, equiparar a relação de forças do cidadão perante o Estado.

Constatar a distorcida aplicação de tão precioso mecanismo de contenção do poder punitivo em razão de um discurso celebrado pela opinião pública e publicada e, até o momento, adotado pela Suprema Corte, é sintoma de profunda relativização do conteúdo dos direitos fundamentais e das consequências deletérias de sua flexibilização no panorama atual.

 

 

MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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