Sérgio Cabral: tropeção no pronome

Publicado em português

Sérgio Cabral resolveu soltar a língua. Abriu o jogo e contou tim-tim por tim-tim o esquema de propinas montado no governo do Rio. A certa altura do depoimento, avaliou os estragos da roubalheira. Disse: “Se nós não tivéssemos feito os contratos, teria-se feito mais na saúde”. Viu? O ex-governador pisou a língua. Tropeçou feio na colocação do pronome átono. Talvez tenha faltado à aula quando o professor ensinou que o futuro do presente e o futuro do pretérito sofrem de mal incurável. Têm alergia à ênclise (pronome depois do verbo). Com eles, há duas saídas:

  1. colocar o pronome antes do verbo (próclise): ele se teria defendido, ele se terá defendido
  2. colocar o pronome no meio do verbo (mesóclise): ele ter-se-ia defendido, ele ter-se-á defendido

Cabral teria merecido nota 10 com a frase: Se nós não tivéssemos feito os contratos, ter-se-ia feito mais na saúde.

Curiosidade

Tancredo Neves repetia a torto e a direito: “Não se deve confiar em quem emprega a mesóclise com perfeição.” Ele chegou a essa conclusão antes do governo Cabral. Só pode.

 

Superdica

Os bons gramáticos concordam que a colocação dos pronomes no Brasil tomou os próprios rumos. Reduzem-se a duas normas:

1. não inicie frase com pronome átono.

2. ponha o pronome sempre antes do verbo: O visitante se tinha retirado antes da sobremesa. A morte não me poderia assustar depois de tudo o que passei. Continuamos a nos exercitar em línguas estrangeiras.

Iniciar a frase com pronome átono tem dois significados:

Um é claro: quer dizer não começar o período: Ofereceu-me aumento de salário. Foi-se embora sem se despedir.

O outro é malandro. Não parece, mas é. Quando ocorre pausa que desampara o pronome, ele vai pra trás. Que pausa? Vírgula ou ponto e vírgula. Compare: Aqui se fala português. Aqui, fala-se português. Severino chantageou o presidente? Não; deu-lhe conselhos. Para se retirar, pediu-me autorização.

Poeminha de Oswald de Andrade

Pronominais

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro.